dias de festa

alguém sem filhos que passasse as ombreiras da porta pombalina de numa festa de fim de ano numa creche lisboeta ficava desde logo desmotivado pelo próprio mote, as próprias crianças, pazadas delas espalhadas por todo o lado gritando de braços no ar como gansos num galinheiro misto, não há copos de álcool, não há gente solteira, ou não é fácil de identificar, não há conversas fora da esfera da parentalidade aventureira, seria difícil explicar-lhe porque alguém havia de entrar aqui mesmo tendo filhos, e passar 2-3 horas de sorriso aberto na cara ao longo de várias performances teatrais mediocremente amadoras dos próprios filhos que não parecem ser fadados para nada do que lhes vai acontecendo, passar 4-5 horas com cara de carneiro ao longo de uma missa campal celebrada pelo prior de Santa Maria de Belém, que canta, e que convida a mãe de alguém para ler um salmo, aterrorizando todos os pais incautos que não sabem que aquilo foi preparado e se sentem emocionalmente transportados para uma aula de físico-química durante uma chamada ao quadro, e ao longo de um arraial de sardinhas que todos trocaríamos por um arraial de porrada desde que estivesse grelhado em condições e houvesse uns jarrinhos de branco ou até de verde tinto e não fosse tudo regado a Jói maracujá.

eu que trago filhos agarrados às pernas dos calções e às vértebras do pescoço também não entendo o sorriso de tanta mulher que já foi bonita imediatamente antes de se esvair em crianças pelas pernas abaixo porque "todo o esperma é sagrado", e deixar acumular leite em pó no diâmetro superior dos braços e na peidola, o sorriso de tanta mulher exausta neste caos de filhos dos outros a correr com copos de sumo na mão e na roupa e sandes de Panrico a escorrer nos cantos da boca como se fossem os sonhos dos pais mastigados e cuspidos, entre palavras de negação e de desconsideração pelo esforço da comunidade em preparar-lhes um ambiente saudável e aquele repasto. mas não acho difícil forçar o hábito de redireccionar o estado de alma logo após o primeiro quarto de hora ao sol, aí já desfiz o sorriso amarelo, já não me ralo com as gotas de mar salgado que me escorrem pela cara limpando-as tranquilamente às mangas da t-shirt de sovaco alçado na direcção da cara da mãe do meu lado direito que se abana com o programa das festas e os versos católicos, que também ela sua como uma mulher a sério, não penso duas vezes antes de me levantar a meio da procissão de animaizinhos vestidos como se fossem crianças mascaradas de animais, e ir procurar uma sombra para perto da zona das comidas que ainda ninguém inaugurou, onde já outros pais se acotovelam em conversa de circunstância e de descompressão e roubam croquetes colocando-os de uma só vez na boca virados para a parede.

já todos reparámos na longa percentagem de rego exposto no cimo das calças de todas as mães que se sentam em cadeiras de crianças, está calor e as camisas esvoaçantes e curtas terminam a meio das costas lançando um rio de lágrimas daí até terminar no fio dental amarelo ou na cueca de renda preta que salta das calças compradas de propósito para acomodar uma tranca a caminho dos 40, e aquilo já não excita nenhum dos pais, estão de telemóvel na mão e pescoço torcido como adolescentes, os que conseguem não fumar, porque desde que se passou pela primeira vez no ano lectivo corrente as ditas ombreiras das ditas portas a testosterona refreou-se a um ponto confortável para não mais perder esse reflexo pavloviano, tolera-se como Cristo um ano inteiro de chapadas de melões maternais saídos dos decotes largos que nenhuma mulher se esforça por amestrar quando se baixa para tratar de uma criança. aquilo não é corpo, é a maternidade extrema, não tem um laivo de doçura sexual porque elas não estão ali pessoas, é o ser carnal tornado veículo de emergência, ministério da providência e da guerra em defesa do território pró-vida e dos pequenos porquinhos seus filhos.

é spam, mete nojo, mamas, mamas, mamas, regos e cuecas de sair à noite em corpos de governantas semi-novas, um homem converte-se a projectos de vida da catequese alheia e lentamente anula-se como predador sexual, vê um mamilo espreitar de um sutiã roxo e pensa nos filhos a alimentar-se, vê um fim de costas aberto e a penugem ascendente de um pescoço descoberto e lembra-se de sacos de supermercado a subir as escadas em equipas de dois, vê uns lábios carnudos e ouve a voz constante de 10 anos fazer observações agravadas sobre problemas crónicos, até que um dia, numa festa de escola, em que distraído a olhar um belo par de mamadeiras pendente de um corpo dobrado, uma cabeça levanta e sorri-nos e diz tão bem do nosso filho mais velho, porque a filha dela é apaixonada por ele e ele é tão esperto e tão bonito, como o pai, ahah, estou a brincar, não estou nada, esta mãe não me mete nojo nenhum, foda-se é bonita e está grávida a dar com um pau, e então enquanto ambos lavamos as cuecas borradas dos nossos filhos no lavatório da escola, sorrimos e trocamos piadas e confidências pouco abonatórias para fazer o outro gargalhar e ressurge o instinto obcecado de conduzir conversas no limite do humor de engate, que desarma e planta cirurgicamente ideias e imagens na cabeça guiado apenas pelo radar único das expressões faciais de encanto, encantar uma mãe grávida. enquanto todos os pais e mães trocam conversas e de parceiro, e os umbongos sobem à cabeça no sol de Junho, todos temos orgulho nas crianças que são nossas e nas que não são porque de qualquer forma não temos que as aturar, e todos admiramos impunemente a nossa mulher distraída ao longe a comer um arroz doce julgando-se abrigada do nosso olhar crítico como nós do dela, comendo-a nós a elas com os olhos, e uma parafilia renasce dentro de nós homens pais, todos, com grávidas nuas e mamilos enormes, e ancas abertas, e vestidos sem função com carnes nuas que espreitam em festas de crianças e vamos para casa ao fim de um dia de festa, a correr com a nossa mulher grávida de gémeos e com os dois miúdos no mesmo braço másculo, mal esperando por chegar a casa e contar a conversa que tivemos com a mãe da Maria Jaquina e do Manel Patrício, alavancar a nossa fantasia com outras pessoas do nosso círculo de festas de crianças e apelar ao ciúme saudável, e ela acha um piadão e ri-se de gargalhada, e que o marido dela também é um pão, que ela o comia com batatinhas e lambia o prato todinho, e que até trocou umas palavras giras com ele, e a gente roça-se na barriga de grávida da nossa mulher e sente-se pequeno porque não a consegue agarrar toda, e os nossos filhos são tão lindos! e estão ali na sala a auto-educar-se com o Canal Panda e o Canal Porco, e a gente beija-se esquecido eu de como se beija uma mulher grávida, e desajeitado intromete-se um pau duríssimo escalando do topo dos calções ao umbigo como um marsupial adolescente, capaz engravidar um batalhão de freiras das Salésias, e vamos fazer trigémeos, anda meu amor, e o vestido de verão largo tenta cair pela minha mão esquerda porque a direita está a avaliar a renda por dentro, e ela diz que não lhe apetece, porque está deveras grávida, e que eu já sei como a minha pila pronta lhe deixa a libido dorida, e que tem que pensar na roupa dos miúdos para o mês que se avizinha, que talvez amanhã, que talvez para o ano.

coabita-se

Todas as noites a Soraia ia ver o telefone e tinha uma mensagem do homem que andava a foder.
Era uma sequência complicada, tinham acabado de se despedir no hotel, ele estava em casa em 15 minutos, ela demorava meia hora e durante a viagem, nada, por vezes ficava no carro à espera da mensagem dele, e nada, tirava o som do telefone e enfiava-o no fundo da mala antes de subir as escadas, não fosse a luz do visor desmascará-la em frente ao marido, a luz do visor que teimosamente acendia quando recebia uma mensagem, "tens que mudar isso nas opções de notificações", dizia-lhe o Telmo, o seu tech savior de trazer pelo escritório, que engoliu com batatas a história dos sms de publicidade da Telepizza de madrugada que estremeciam o seu sono de borboleta. Na verdade andava a foder com tal brutalidade que chegava à cama e caía inanimada até ao dia seguinte, nada a acordaria, ainda que a Telepizza e o Holmes Place enviassem de facto mensagens de madrugada.

Escolhia cuidadosamente a mala de manhã adicionando um critério à elegância: opacidade, se era dia de queca. Antes deste critério, chegou um dia a casa e deu de caras com o marido no corredor, telemóvel na mão, virou-se para a parede para pendurar a mala de pano translúcido enquanto enfiava nervosa o telefone dentro das cuecas, por baixo dos curtos calções brancos. Como sempre, foi nos instantes mais inoportunos em que entrava à porta que recebeu a mensagem, ficou com a passarinha a reluzir como o coração de jesus por baixo da túnica, o seu marido tinha acabado de lhe dizer "hhmlá".. desinteressado e voltava para a sala, mas ela transpirou com tinha transpirado meia hora antes nos braços do personal trainer, e entrou na casa de banho a tremer tanto que partiu um salto e teve que vomitar só um bocadinho.

Depois com as providências da mala opaca entrava com segurança em casa, depois directamente para a casa de banho, lavava-se outra vez, tinha sempre uma enorme vontade de fazer xixi, via a mensagem que consistia sempre numa variação de uma frase feita qualquer que lhe dava vergonha alheia. E vergonha própria por andar a foder aquele homem bimbo de pila demasiado gorda mas que sabia lambê-la como um cão baboso, como nenhum outro homem o tinha feito na vida, nem durante o grande bacanal que foi encontrar-se de repente solteira e linda aos 27 anos, depois de se separar do namorado fofinho que tinha desde os 18, e antes de casar com o Joca, esse calhau de granito que nunca quis saber do seu passado sexual, nem dos seus apetites, diga-se, mas que era de facto um homem adulto como ela precisava para se sentir mulher adulta.

No primeiro orgasmo que teve com o amante que parece um segurança pensou que não conseguiria conter os esfíncteres e que ia tudo correr muito mal para cima da cara dele, enquanto isso sentia soltarem-se-lhe do peito uns urros incontroláveis, depois a energia fugiu-lhe dos músculos de tal forma que quando ele lhe subiu para cima e a alargou com aquela espécie de pequeno extintor, não teve forças para lhe dizer que lhe doia um bocado e limitou-se a ser fodida dos dois lados durante 20 minutos que lhe pareceram 2 horas. Naquela primeira viagem de carro chorou o caminho todo com a estranha impressão de ter sido inapelavelmente violada por alguém que não conseguiria articular duas palavras para a seduzir a tomar um café. Mais tarde tomou-lhe o gosto, sentiu que o prazer compensava o mal de consciência, as posições eram sempre poucas, o que agradecia após tantos anos de miúdos eufóricos a testar a elasticidade da pila e da sua paciência, e além de poucas as posições  eram assumidas como uma marioneta, pelas mãos maciças do PT, o que a libertava para se concentrar na sensação porcalhona de ser empalada por um gorila. Foi com ele descobrindo o seu próprio corpo, mas não lhe atribuía grande mérito nos achados além do sexo oral, tudo o resto era fruto do ponto de maturidade da sua luxúria que nunca morreu mesmo após 10 anos de casada com um armário trancado à chave, nas palavras e nos actos sexuais.

Odiava-se contudo por se expôr a este homem por mera fragilidade emocional, odiava-se por trair a parte da família que não deixava de amar, a filha, odiava o marido por colocá-la naquela situação, por desprezá-la, por se comportar como se estivessem irremediavel e despresivelmente presos um ao outro por causa da miúda. Culpava-o pelo mal que sentia o seu adultério trazer à casa. Odiava o nome dele, hoje em dia preferiria tratá-lo pela ordem correcta dos nomes, Cajó, mas Cajó soava-lhe mais pateta do que patético, e não queria imprimir qualquer tom jovial à comunicação entre ambos. Todos os dias acordava pensando em separar-se, preferindo que fosse ele a fazê-lo ou a dar-lhe uma desculpa mais taxativa, indesculpável, que a sociedade não lhe permitisse continuar a fugir com o cu à balança, pegar na miúda e ir viver para perto dos pais.

O PT (chamemos-lhe Manelinho das Couves), o Manelinho das Couves era "bom de cama", péssimo para um diálogo, o que a embaraçava quando se lembrava dele no quotidiano, nomeadamente em frente à família. Soraia pediu-lhe para parar de enviar mensagens porque a colocava numa situação de terror constante em casa, terror de ser apanhada, mas na verdade foi porque tinha suores frios e náuseas quando as lia, estragava-lhe a boa sensação deixada pelo bom sexo, o cheiro dele indelével mesmo depois do duche já não era o cheiro do prazer, mas do bimbo de lá do ginásio que lhe pôs as patas em cima. Curiosamente achava-o bastante querido ou nunca teria baixado os corsários para a queca pirata, a conversa bimba ao vivo tolerava-se muito melhor, sobretudo depois de fazer exercício, com as defesas todas em baixo, mas a bimbalhice lida era como tentar escutar a letra de uma música da Rebeca, parecia a gozar, mas sabia-se que não era. Ele não entendeu, pensou que o clima de adultério e a inobservância das instruções dela ajudariam a mantê-la com o coração e o pito aos saltos, rebelde, e continuou a enviar mensagens, forçando a Soraia a desistir das quecas, e depois do ginásio. Mas já não era a mesma pessoa.

Surgira entretanto em cena um menu muito mais interessante, que a ajudou a ignorar as mensagens desesperadas do gorila, alguém do passado, e é bem sabido, as quecas que se falharam enquanto jovem têm o apelo da vingança de uma juventude perdida, do orgulho ferido, ou do prémio não reclamado quando reaparecem, mesmo mais velhos, mesmo mais desenganados com a vida, mesmo casados e com filhos, e até fisicamente alterados, a memória emotiva é extremamente forte. Ainda por cima, para mal dos pecados da Soraia, não havia quaisquer certezas na nova situação que se afigurava, não estava assegurada, e esse era o brilho no olho do peixe. Pedro "Preto", das noites infindáveis nas esplanadas sobrelotadas da adolescência e das tardes de praia no inverno a ver heats de bodyboard, padecia agora do mesmo mal que ela, o matrimónio. Tinha uma estranha capacidade de resistência ao charme internacionalmente famoso da Soraia, mas nunca permitia que lhe restassem dúvidas acerca da sua disponibilidade. Então... que caralho, faltava a prática, e isso estava a deixá-la ainda mais ansiosa do que estivera quando tinha 16. Não sabia o que tinha que fazer para despoletar o processo, nunca precisou de aprender isso, não se lembrava de um homem a deixar assim sem usar as mãos. Estava doida, sentia-se pronta a todo o momento, perdeu a vergonha de ser apanhada. Na brutalidade sexual com o Manelinho das Couves tinha-lhe faltado a componente da antecipação. Agora sim, sentia-se solteira dentro de uma relação de séculos, sentia-se feliz e capaz de trair sem remorso. Não via qualquer necessidade de se separar do Cajó, o colega de casa, o seu co-progenitor, o homem que merecia que não lhe pedissem o divórcio. Sem qualquer prova material que o justificasse, abraçava o adultério na divina graça do Senhor.

as pequenas mortes

a Júlia fechava o bar e ficávamos todos lá dentro, muito bêbados, enquanto ela contava o dinheiro da caixa. a confiança entre o grupo era de tal forma, confiança cega de pessoas da noite que acham que encontraram as almas gémeas no fundo de copos de wishkey e cerveja, que por vezes as contas não batiam certas e todos queriam contar o dinheiro, e ela deixava. o primeiro que contasse mais dinheiro do que era suposto haver, fechavam-se as contas, e prosseguia-se noite fora a tirar imperiais, a fazer tostas mistas, linhas de coca, teorias da conspiração e da relação conjugal, etc.

por volta desta hora (três, quatro), com a porta do bar fechada, todos os casais se desfaziam e acabávamos todos em conversas privadas com a namorada do próximo, geralmente de entrosamento facilitado. e a piada era essa, não haver pinga de adultério ali, apesar de todas as bocas trocadas em conferência aberta escorregarem para o facilitismo da piada swing. disse-me o Pedro certa vez enquanto eu fazia uma massagem nos pés da Sofia para ir com ele à casa de banho, se a minha pila não fosse muito maior que a dele, que tinha o seu aval para levar a Sofia a dar uma volta. era uma piada, disse-o e repetiu noutras ocasiões para toda a gente se rir, mas em privado diria a mesma coisa, sobretudo porque ele queria comer a Júlia desde que eu me lembro.

havia um entendimento tácito de que tínhamos que ter cuidado, alguns do grupo eram mais constantes, eu e a Júlia, o Pedro e a Sofia, o Manuel e a Rita, se estávamos só nós as conversas eram mais ordinárias mas com o day after mais presente. mas se por acaso havia alguém solteiro, se valesse a pena e era raro deixar alguém lá ficar que não valesse a pena, era todo um bando de papagaios para um estendal curtinho. foi numa dessas ocasiões que conhecemos a Jessica, uma loira de cabelo solto, surpreendentemente inteligente e de ironia fina (finíssima pá), de sorriso aberto e gargalhada genuína. era aspirante a actriz, na época da goldrush televisiva.

por sorte minha, a Júlia era afoita e viciada em fazer toda a gente gostar dela, cedo descobriram afinidades femininas e passavam noites a fim a gozar com os homens em geral, comigo em particular. a Jessica engraçava comigo também, notava-se na forma como me picava com desgarradas libertinas acerca da minha fraca virilidade, acompanhadas de sorrisos, que interpretava como "quero-te comer enquanto a tua namorada observa".

uma famigerada noite que começou com o aniversário de alguém e que trouxe muita gente nova ao fecho privado do bar, a Jessica foi elevada a habitué por contraste, passou para trás do balcão, ajudou nos shots e imperiais e embebedou-se terrivelmente com a Júlia, a ponto de o Pedro me vir buscar à mesa quando eu conversava com duas dinamarquesas não me lembro em que língua, para ir ver o que se estava a passar: Júlia e Jéssica aos melos na cozinha. Pedro pôs-me a mão no ombro e disse-me sentidamente "cabrão".

saímos da cozinha desorientados, tirei um cigarro, naquela altura fumava quando não sabia o que fazer, e o Pedro perguntou-me se não queria antes ir com ele à casa de banho dar uma linha. fomos à casa de banho mas não dei linha nenhuma, não queria gerir aquilo com a impetuosidade da coca. "leva-me contigo" disse-me o Pedro "podes foder a Sofia sempre que quiseres, ou melhor sempre que ela quiser", mais um golpe de barro à parede do nosso amigo nocturno que tranquilamente me veria em cima da namorada, mesmo que não pudesse comer a Júlia, desde que o mundo pudesse ser lindo como sempre foi, e ele pudesse acreditar que seríamos sempre amigos, e o cor de rosa fosse a cor do negócio dos bares. eu também queria acreditar que seríamos sempre amigos, mas geralmente não conseguia encarar aquelas pessoas à luz do dia, o que dificulta uma amizade ortodoxa.

saímos da casa de banho e já só o núcleo duro restava, Jessica e Júlia tinham saído do recontro da cozinha, e agora mais calmas com a língua, mas mais agarradas ao rabo uma da outra e em performance teatral para os nossos amigos, começaram a planear matar-me. morte por sexo foi a escolha óbvia, mas antes Lux, uma decisão que eu não entendia, porquê Lux?, vamos só perder tempo, a noite está decidida, quero morrer depressa.

Pedro, Sofia, Rita e Manuel, enterneciam-se com o nosso three-way porvir, eles mais que elas, sugeriu-se um bacanal mas Júlia e Jessica não estavam para me partilhar com homens. notei alguma satisfação entre eles que eu não fosse já para casa com elas, adiando a certeza dessa inveja que sentiam. íamos ao Lux então, últimos xixis, e pela primeira vez pude perguntar à Júlia sem palavras se aquilo era mesmo para ir para frente. "acho que sim" disse-me, "sabia que ias adorar". estávamos os dois agarrados aos beijos quando a Jessica se aproximou, agarrámo-nos os 3 e beijámo-nos os 3, com os holofotes acesos sobre o meu beijo com a Jessica. só o Pedro viu e agarrou-nos também, a velha piada do empata-fodas, resulta sempre.

com a confusão de fechar o bar, com Pedro e Manuel ansiosos como miúdos para me fazer perguntas, dar sugestões, fazerem-se convidados, as miúdas foram todas juntas de táxi antes de nós, e eu só pensava que ainda me ia fugir tudo das mãos, bastava que embebidos em álcool como todos estávamos alguém perdesse tempo desnecessário a falar com um amigo chato, a discutir com um taxista, à espera na fila do multibanco, para o clima e os caminhos se descruzarem ou as linhas do destino sexual, pelo contrário, se emaranharem por completo e eu acabar no Lux a conversar com um indiano que vive em Chicago e que está cá a fazer um doutoramento numa cena desinteressante ligada à criação de perus.

à porta contudo, o Miguel cumprimentou-nos espirituoso "boa noite, as suas duas esposas já entraram" sorriu, e rimos todos muito, porque era o Miguel que nos dirigia a palavra, eu ri mais que os outros por confirmar que estava tudo sobre carris. entrámos, era daquelas noites em que parecia que havia ecstasy no ar condicionado. logo no bengaleiro encontrei a Mia, óptima, uma ex-relação mal terminada, a conversa correu lindamente para tantos anos de frieza protocolar. estava divertida, disse que eu estava giro, acariciou-me o braço de alto a baixo, perguntou se ainda estava com a Júlia, quando o confirmei fez um ar desiludido de sorriso pornográfico, pronto, estava completamente bêbada, mas bêbada conta. a minha hiperconfiança acumulada até aí facilitou-me a despedida. enquanto o Manuel encontrou a Rita, o Pedro e eu fomos procurar as dissidentes, primeiro no andar de baixo, no estado em que estavam era de prever que estivessem a dançar nesta selva. não estavam. encontrámos dois amigos do Pedro, um deles tinha visto as miúdas no andar de cima e perguntava-lhe quem eram as duas amigas da Sofia, estava doido e o Pedro disse-lhe "têm namorado". subimos, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei, pelo caminho encontrei, depois três gays nas escadas pararam-me, olhos muito abertos "ai filha!" perguntaram o que usava para ter aquele bronze, "melanina", um deles não riu. eu era o rei, furava pela multidão com olhos postos em mim, daquelas noites em que Deus me pintou de dourado e tenho a certeza que vou acabar na cama, eventualmente sozinho.

o Pedro queria ir outra vez dar na coca, esperei por ele à porta da casa de banho, tenho ideia que a minha vida nocturna foi muito passada à porta de casas de banho. apareceu a Marta que recolhia copos, fez a festa da nossa relação nunca consumada "Zé!" abraçou-me com o braço que não tinha bandeja, e os seus beijos lambidos soaram-me melhor que nas outras vezes, "a Júlia está ali com a Jessica, ao pé da varanda, estava a dizer-me que estava só à tua espera para irem embora". óptimo! havia uma máquina de preservativos nova na entrada da casa de banho, coisa em que nunca antes tinha reparado, nem voltei a ver ali depois. interpretei aquilo como um sinal, optei por abastecer-me, em casa não havia nenhum dentro do prazo, só uns apertadíssimos que me deram na rua, certamente sobras do mercado asiático ou modelos para distribuir nas escolas primárias, a Jessica podia não achar piada à minha facilidade em ignorar regras básicas de sobrevivência. que digo? a Júlia é que podia não achar piada. havia 3 tipos de preservativos em duas quantidades, escolhi uma caixa de 3 preservativos de sabor a mentol, porque pensei bêbado que o mentol era melhor para desenjoar do álcool e porque éramos 3. foi um raciocínio infeliz, fruto da pressão das circunstâncias.

o Pedro saiu da casa de banho, encontrámos imediatamente a Sofia "Zé, a Jessica está um bocado mal" o quê? não quis entender à primeira, falávamos aos ouvidos uns dos outros por causa da música para demolir edifícios, quando percebi não quis acreditar que ela estivesse assim tão mal, mas chegámos perto da varanda e Jessica tinha a testa pousada na mesa, já tinha ido vomitar várias vezes e não queria que lhe tocassem. era a primeira grande bebedeira da sua vida, dizia ocasionalmente. Júlia amparava-a e olhava para mim "olha menino, kapputt!", estava mais preocupada que desiludida. "água" disse eu ao ouvido da Jessica "bebe água, muita água, isso vai passar" num esforço patético para endireitar a minha vida.

a Jessica veio dormir a nossa casa, completamente derrotada, deitámo-la no sofá. Júlia deixou-me assistir enquanto a despia e a Jessica murmurava "perdoem-me! que vergonha! podem fazer de mim o que quiserem desde que não me abanem muito", eu fui buscar um cobertor para se tapar e um balde que coloquei aos pés do sofá "Jessy, está aqui se te sentires mal". agradeceu-me imenso.

2007, hoje

- quando é o nosso aniversário?

Júlia mexe a colher no café procurando disfarçar o interesse da pergunta, o sorriso admite-o.
- sei lá. diz-me tu.
- dia dos namorados, 14 de Fevereiro?
- que patetice, esse foi o dia em que saíste de casa da Sofia, fomos só tomar café.
- eu sei, mas então? em que dia foi? foi no sábado seguinte, dia 17? é o sexo que marca o início da relação?
- sim, e depois andaste na cama com 50 mulheres até ao Natal. iniciaste 50 relações diferentes.
- foram só 30. e tu, estiveste com quantos homens?
- nenhum.
- mentirosa. estiveste pelo menos com aquele Rogério da pila grande.
- que ridículo. não estive nada com ele, só fomos tomar café umas vezes apesar dele ter tentado reatar coisas antigas. e fui tomar café porque tu andavas a dar-me para trás e fazias-me sentir uma merda. ele apanhava-me no facebook e andava ali a insistir até eu aceitar. sentia-me com baixa auto-estima, precisava de me sentir desejada. não gosto nada de me lembrar disso, de me ter exposto a ele nessa altura.
- porquê?
- porquê o quê?
- porque é que não gostas de te teres exposto, se foste mesmo só tomar café não entendo em que foi que te expuseste, se já tinhas estado com ele na cama antes e ele voltou a querer estar contigo até é bom sinal. geralmente depois do sexo os homens perdem a ansiedade, se realmente só estiverem interessados em levar-te para a cama.
- pois, se calhar foi por isso que perdeste o interesse em mim depois de 17 de Fevereiro.
- não perdi nada. não estou aqui a tomar o pequeno almoço, 8 anos depois?
- fiz um esforço épico para te conquistar durante esse ano.
- e passaste os 7 anos seguintes a descansar sobre os louros.
- vamos discutir?
- não, estou a brincar. 17 de Fevereiro é uma data estúpida, eu ainda não tinha ultrapassado a Sofia, por isso é que não quis agarrar-me a ti, sabes isso.
- mas também não me soltavas.
- isso é bom sinal, já te disse. e também já te disse que ainda aqui estou.
- então e quando é o nosso aniversário? 26 de Dezembro?
- acho que isso também é desprezar todo esse ano, ainda fizemos boas memórias.
- entre essas memórias contam-se as 70 mulheres com quem estiveste.
- foram só três ou quatro, ou 5. e são boas memórias para mim, sim, mas tu tens o teu próprio percurso gravado na minha cabeça.
- oh, que orgulho. tens pistas de corrida gravadas na cabeça e eu fui a mais rápida a cruzar a meta.
- mais rápida não, és uma corredora de fundo. foste a mais resistente.
- essa merda soa pessimamente.
- pois soa, mas o que quero dizer é que foi a ti que eu escolhi para chegar ao fim.
- ainda estamos longe do fim, não te entusiasmes.

Júlia mexe a colher na chávena vazia tentando apanhar a espuma que resta do café, procura disfarçar o orgulho em puxar incessantemente o tapete da sua felicidade ao pai dos seus filhos.
- o dia do meu aniversário foi um dia bom, depois dos santos fomos para tua casa e quando acordámos deste-me um cabaz de brinquedos e rifas de vales personalizados de massagens e jantares que nunca cumpriste.
- nesse dia desapareceste a meio da tua festa com uma miúda qualquer e apareceste horas depois com cara de ter tido sexo, para ir dormir quentinho a minha casa.
- tu tens memórias péssimas de mim. só ficaste comigo porque fui difícil de agarrar? eu tenho boas memórias tuas.
- pois tens, eu só proporciono boas memórias. a todos os homens.
- sabes aquela minha amiga que teve uma paixão na adolescência por um gajo popular lá da escola dela, uma paixão que durou anos e cuja memória se manteve pela maioridade, alimentada pelos fugazes contactos que ela conseguiu forçar nesses anos... e aos 30 anos ele reapareceu... gordo, meio careca, ligeiramente alcoólico, ligeiramente desempregado, inteiramente idiota, pretensioso e falhado, e muito mais disponível para ela, como seria de esperar, e ela vive com ele há 3 anos de martírio não declarado e impaciente?
- sei.
- podias ter-me interrompido. bom, achas que da perspectiva dela ele é a mesma pessoa? claro que não. achas que a memória que ela tem do tempo em que o amava ao longe se impõe como a figura da pessoa com quem vive agora? achas que ela sente a obrigação de aproveitar esta dádiva de Deus que foi o regresso de quem a fez sofrer durante tanto tempo por desinteresse? que ela ama o mito que criou numa idade em que a memória é gravada em fogo, e não o homem por trás do mito? é que por vezes sinto-me um gajo gordo, careca, falhado, sombra do que fui ou do que projectaste em mim, de quem tu só retiras a memória do que te custou adquirir, e que simplesmente não queres passar novamente com outra pessoa por tudo o que passaste para chegar a mim. como se tu não quisesses perder a relação, o estatuto, a memória, e não a pessoa.
- acho que és parvo. a minha relação contigo não tem nada a ver com essa. a tua amiga gosta do namorado, seja porque razão for, mesmo que esteja iludida acerca dele. eu tenho raiva de ti, muita, por várias razões. mas és meu, amo-te.
- ahahah, até foste buscar essa palavra maldita! parece que estou a assistir uma telenovela portuguesa, nem te sai bem dos lábios essa merda.
- ahahah, quando eu a digo tu gozas comigo, vês? é por isso que eu não digo estas coisas.
- foi querido. até o facto de teres admitido que tens raiva de mim. adoro-te, deixa-me manter na memória institucional a nossa relação inteira: 10 de Janeiro, quando dançámos kizomba nos teus anos.
- que parvoíce, ainda vivias com a Sofia.
- eu sei, mas foi a dançar abraçado a ti, juro, que decidi que queria ter filhos contigo.

Júlia perde momentaneamente a noção da coordenação motora e agarra com os dedos todos a colher suja de café, deixando-se invadir pela nostalgia, rara em si, mas violenta e feliz quando envolve os actos de amor na origem dos miúdos.
- que estupidez. vou tomar banho.

Perpétua

- pronto, eu vou para a sala agora, está bem? dorme, dá-me um beijinho.
- pai.
- diz.
- o avô da Sara morreu.
- ... foda-se.
- foi para o céu, e não volta nunca nunca nunca nunca mais.
- foi? pois. já devia ser muito velhinho.
- pois era, e ele magoou-se num pé e depois morreu. agora ele é uma estrela.
- uma estrela. claro, é uma estrela.
- quando eu morrer vou ser uma estrela?
- ah, não penses agora nisso, ainda faltam muitos anos.
- faltam muitos anos?
- sim.
- quantos?
- muitos.
- quando eu for muito velhinho?
- sim.
- quantos anos tinha o avô da sara?
- não sei, tinha mais que muitos.
- quantos anos tens tu?
- 37.
- eu também vou ter 37 anos?
- sim.
- quantos anos tem o avô Pedro?
- 70.
- o avô Pedro é muito velhinho.
- nada disso, está agora a sair da puberdade.
- mas ele disse que era.
- ele estava a torturar-te psicologicamente.
- quando eu tiver 37 anos quantos anos tu vais ter?
- 70.
- como o avô Pedro. e quando eu tiver 70 anos quantos anos vais ter?
- 115.
- e quando eu tiver 115 anos quantos tu vais ter?
- 164.
- e quando eu tiver 164 anos quantos anos tu vais ter?
- vou ter muitos, falta muito tempo Henrique, não penses nisso.
- e quando eu tiver 164 anos o avô Pedro vai morrer?
- filho, ainda faltam muitos anos, não penses nisso.
- eu não quero que tu morras.
- Henrique, eu nunca vou morrer.

Faixa de Möbius

A luz do sol entra por qualquer buraco, tem calor próprio, mesmo que concentrado numa porra de 5 cm quadrados. Se toca numa têmpora, sobretudo numa têmpora transpirada de álcool em excesso e pressionada por dentro pela consequente bomba cefálica que só por si impediria a merecida inconsciência por mais que 4 horas seguidas, proporciona um acordar lento e penoso. Adão esqueceu-se de fechar o estore. O quarto a nascente, adivinhe-se, nasceu virado para o sol, que não perdoa uma fífia para brilhar de manhã aqui dentro. Adão não nasceu neste quarto, mas doeu-lhe menos o nascimento que o acordar todos os dias.

Hálito de lamber corrimões, língua de vaca fumada, olhos de recém nascido, e torcicolo, todos companheiros de lençol molhado. A Eva já saiu de casa, fugiu do toque dele, levanta-se sempre mais cedo, sobretudo quando Adão se mija na cama.

Cigarro à boca, um resto de cerveja num copo na cozinha (tinha um bocado de cinza, mas só eu é que vi), senta-se na sanita a fumar e a cagar depois de ter vagueado à procura de não sei bem o quê pela casa alva. Duche com ele. Meia hora. De água a ferver, a lavar os pecados e os testículos.

A casa de banho é um salão, diz-se que foi uma biblioteca medieval, ao sair do banho Adão pára em frente ao espelho e observa a barba, tem um dia, mas é mal semeada porque Deus odeia-o. Máquina de barbear, não arrisca a lâmina, isto implica 5o'clock shadow logo de manhã. Looking sharp!

Ligou para o escritório.
- Adão, conta.
- Miguel, vou chegar um bocado atrasado. A Eva saiu de casa e deixou-me aqui trancado, estou há uma hora à procura da chave, mas ela deve ter levado e não atende o telefone.
- Ok Adão. Até já. Olha.
- Diz.
- Bebe água. E vai comer qualquer coisa antes de vires que estás com uma voz de quem acabou de comer um cagalhão.
- Foda-se..??

Miguel já tinha desligado o telefone. Como ousa?! Como ousa Miguel sugerir que Adão estava de ressaca? Que lhe estava a dar uma desculpa? Como ousa Miguel pensar? Adão perde-se logo de manhã na raiva que sente de o mundo ter dificuldades em adaptar-se a si, mas hoje menos obsessivamente, que a dor de cabeça lateja forte. "Um palhaço este Miguel" pensou, "está a ver se me fode, que cena feia, tss" abana a cabeça em desaprovação profunda, de desilusão paternal. "Qualquer dia fodo-o".

Ainda nu procura vestígios da noite passada no telemóvel. Dois telefonemas para a Margarida, zero minutos (não atendeu? ainda bem), outros dois para o Bernardo, um para a Sara, 14 minutos e 23 segundos. Foda-se, não. O horror instala-se quase ao mesmo tempo que a cobardia e decide esquecer que viu este registo. Não decide, esquece-se simplesmente enquanto pensa em masturbar-se antes de ir trabalhar. "Cabrão do Miguel, estás a dar-me baile, vais ficar à espera até me apetecer". Até lhe apetecer. A fazer o que lhe apetecer. Tem resultado bem este subterfúgio da culpa. "Vou fazer o que me apetecer, toda a gente à espera que eu me comporte como querem, a mim não me apetece, sou dono de mim. Tenho direito de fazer o que me apetece. Apetece-me gastar dinheiro, apetece-me foder, apetece-me beber, apetece-me mentir. Foda-se apetece-me! Caralho, não mandam em mim. Estou farto de obedecer." Na verdade foi uma vida inteira a desobedecer, a fazer o que lhe apetece, nem a anulação do superego é nova, mas a relatividade oscila na medida do desejo.

- Bernardo, então? Tudo fino?
- Adão, estás melhor?
- Melhor? Sim, estou óptimo. Porque é que não havia de estar bom? Foda-se..
- Por nada... Estás a sair de casa?
- Não, achas? Por acaso tive que vir agora a casa buscar uma coisa. E nada, apeteceu-me ligar.
- Ok, está tudo bem?
- Sim. Olha, nós ontem falámos, não foi?
- Sim...
- Eu sei que falámos, mas já não me lembro bem, tinhas-me perguntado qualquer coisa..? que eu fiquei de ver?
- Não, não perguntei nada.
- Hmmm.. ok, fiquei com essa impressão.
- Olha, tenho que trabalhar agora, ligo-te mais logo.
- Mas estava tudo fixe? Ficaste chateado com alguma coisa?
- Só com o facto de me teres acordado a mim e à Madalena às 5 da manhã.
- Foda-se já não posso ligar a um amigo quando me apetece? Só não percebi que era tão tarde, desculpa lá olha...
- Na boa. Caga nisso.
- Mas correu tudo bem, a conversa?
- Sim Adão, correu tudo bem. Estavas com os copos, mas dentro disso correu como previsto.
- Pois, estava um bocado. Foda-se não me lembro de muita coisa. Mas liguei à Sara, uns 15 minutos de conversa.
- Não sei o que lhe possas ter dito em 15 minutos no estado em que estavas, não queria estar no teu lugar.
- Bem caga, não quero pensar mais nisso, caguei na miúda.
- Acho bem. Olha, tenho mesmo que ir trabalhar, falamos logo.
- Sempre a despachar-me, caralho.
- Vá, abracinhos.

Em frente ao espelho do corredor vê o seu corpo semi-musculado de frente, não se vira de perfil, não fez natação em pequeno, é estreito, da espessura de uma pessoa doente. Vê melhor a cara. Rugas. Cabelos brancos. A campainha. A campainha? Vai à porta todo nu, espreita e não vê ninguém, levanta o auscultador e não ouve ninguém. "Qué esta merda? Falta de respeito a tocar a esta hora para casa das pessoas e depois não dizem nada, provavelmente é o cabrão do carteiro, que falta de civismo, tsc tsc".

No café, sempre ao balcão, engole meio folhado de salsicha de uma dentada e bebe metade da meia de leite, nunca gostou de meia de leite, ao sair chamam-no para pagar a despesa, esqueceu-se outra vez, o empregado sorri. Novamente no balcão o telefone toca.

- Estou?
- Adão!
- Quem fala?
- Rodrigo. Estás bonzinho?
- Olha o abertura! Está tudo bem, e tu? Porreirinho?

Rodrigo, uma das velhas ligações ao bairro da sua adolescência e ao rugby, tem uma proposta de jantar irrecusável, o novo restaurante de um amigo comum na Bica, degustação e bebidas à discrição, as meninas Saldanha, a Xuxu (a Xuxu!) e a prima (não sei o nome dela mas também é prima do Rodrigo e da Madalena do Bernardo), a Mafalda Viana e umas amigas assistentes de bordo, provavelmente um grupo que incluía a Mariana Sousa Macedo. Irrecusável. Aceita, com uma reserva suave, tinha até às oito da noite para chatear-se com a Eva. O dia já começava a parecer mais bonito, quase não lhe doía a cabeça, saiu do café com uma imperial na mão (afinal era praticamente meio-dia).

O dia no escritório passa rápido, entre fricções forjadas com o Miguel, que condescende superiormente numa arte da fuga desenvolvida ao longo de 10 anos de convivência funesta. Miguel gostava de espicaçar e depois dar o lombo. Ao fim do dia, depois de toda a gente sair, já conseguiu que Adão estivesse suficientemente à vontadinha para entrar na sua sala com uma garrafa de Johnnie Walker.

- Vai um copinho? Binsky?
- Ahahah!
- Ahahah, bora lá pá, já bazou toda a gente.
- Siga, vou lavar copos do almoço.
- Temos que trazer uns copos decentes para o escritório - Adão puxava duas cadeiras para perto da janela, uma vista deslumbrante sobre o rio e a praça D Luís I, onde já os romanos "fundeavam".
- Qual é a ocasião? Tens festa hoje?
- Olha-me este, sempre a julgar que sabe ler as intenções dos outros! Tenho pá, por acaso até tenho. A inauguração do restaurante de um grande amigo meu. Queres vir? Posso levar um amigo.
- Sou teu amigo? Então quero.

Bebem apenas dois copos no escritório mas conversam por três ou quatro. Adão tem indubitavelmente um carisma social que prende pessoas a uma teia de fascínio e preocupação como a um companheiro de guerra num posto avançado. "Falta-te? Eu arranjo-te!", "Sofres? Eu sofro contigo!". É fraternal e chega a compensar os momentos maus. Miguel sabe-o de longa data, já conhece as desilusões subsequentes, e deixa-se levar na mesma. Afinal é com Adão que tem as melhores histórias de copos, e as piores histórias de confiança traída. Falam da vida de Miguel em Londres, dos grupos de portugueses emigrantes na cidade, Adão diz que conhece perfeitamente Londres, e conhece perfeitamente os grupos de emigrantes porque uma grande amiga sua mora lá, aliás, dois grandes amigos seus, porque o melhor amigo dela também é um grande amigo dele, conhece perfeitamente Londres e o melhor amigo da sua grande amiga. Miguel não os conhece. Ou melhor conhece Londres apenas. Adão fala de Piccadilly, e da Tower Bridge, e de quando foi à Tate, onde viu o Banksy. Estava lá, o Banksy, a ver uma exposição e Adão reconheceu-o e foi lá falar-lhe, pagou-lhe um copo. Miguel ignora o momento confrangedor, pergunta-lhe se viu Brick Lane e Adão faz uma cara não treinada, Miguel corrige, "o mercado de Brick Lane", e Adão lembra-se em silêncio que Eva lhe falou em ver mercados e ele preferiu ir beber pints num pub incógnito enquanto Eva se divertia femininamente a ver "mercados" tsc. Diz que, ah sim, conhece perfeitamente Brick Lane e até pormenoriza o ambiente de feira. Miguel gosta da conversa porque fintando pela eloquência fantochada de Adão ele até tem piada. Apesar de se rodear de pessoas que começaram a cultivar os interesses e o futuro na adolescência quando ele andava interessado em ser adoptado pelos betos de Cascais e em ser convidado para as festas em casa do tio Patinhas, quando não está a tentar fazer uma demonstração de cultura plagiada dos melhores amigos escolhidos a dedo, até tem conversa de homem e um raciocínio bastante ágil, podia ser um stand up comedian com um laivo dramático. Aliás foi essa versatilidade que lhe permitiu agregar gregos e troianos no mesmo pote de amizades, aquele que gostava de ser o melhor amigo de toda a gente se ao menos conseguisse controlar o ódio que sente por quem se atravessa no seu fantasioso percurso de locomotiva rumo ao estrelato.

Quando a conversa entra na fase boa falam da vida, das relações, Adão abre o jogo da fragilidade conjugal, de como a dependência que os homens têm das mulheres os torna piores companheiros, quase se escrevia um blog com tanto experimentalismo pessoal, mas depois entram pelas miúdas do seu passado, e acabam a comentar uma ex-colega de universidade em comum, a Sara Albuquerque.

- Que coincidência do carapau! A Sara Albuquerque??
- Foi da minha turma, mas quem é que não conhece a Sara Albuquerque?
- Que mamões, meu deus, sempre a apontar o caminho.
- São o Norte e o Norte magnético.
- Ahah!

São quase nove horas, Adão esqueceu-se de se chatear com a Eva, que também não ligou, dir-lhe-á então a verdade quando chegar a casa, assim chateia-se depois do facto consumado e nem precisa mentir. Descem lentamente a escada, numa altura em que o álcool e o burburinho surdo da rua são o composto anestésico da antecipação, da excitação processional de um evento nocturno cheio de gatas. A rua fervilha de grupos entre os 20 e os 30 anos de onde só o género feminino sobressai a Adão, miúdas de calções acima das nádegas, vestidos leves e curtos, peitos de franga generosos que preenchem facilmente decotes largos. Miguel já sente a mesma emoção adolescente de Adão, embora com mais vergonha da sua própria libido proto-alcoólica e mais contido nas observações.

- Isto está a puta da loucura!
- Mulheres boas comendo meloas!

Param à porta do restaurante "A Peixeirada do Bairro" e Adão começa o folclore dos abracinhos e das gargalhadas de longo curso pelas muitas pessoas à porta de aperitivo na mão. "Grande Adão, nunca falhas. A Mariana Macedo não veio, caríssimo" diz-lhe o Rodrigo logo de chapa "Voou para um daqueles países com ébola, está de quarentena em Tróia". Adão procura disfarçar a primeira desilusão com uma irritação dissimulada "Ah sim? Que bom para ela" e passa às apresentações "Este é o Miguel, um grande amigo meu". Olá, olá, Rodrigo, Margarida, um beijinho, Miguel, olá, olé, Tomás, Mariana Pires de Lima, Barbosa de Mello, José Coutinho, Caetana Veloso, um beijinho, um olá, um copo para a mão trazido por Adão que num salto rouba dois aperitivos com uma azeitona cada e em menos de nada bebe o seu sem distinguir o tipo de álcool, come a azeitona e cospe o caroço para a mão procurando logo onde o deixar, voltou para a bandeja do empregado.

Depois das apresentações e dos sorrisos automatizados de boas vindas indiferentes Adão apresenta Miguel já no interior ao dono no restaurante, com quem não tem grande confiança, "Este é um grande amigo meu" e o dono do restaurante cumprimenta-os activamente pergunta se estão a gostar de tudo e volta freneticamente ao trabalho de gerir os empregados com um chicote de cinismo empreendedor. Miguel e Adão formam instintivamente o seu mini baluarte perto da saída das bandejas de canapés e cálices tintos. Retomam a conversa no ponto onde ficou, mulheres giras, agora ilustrada pela alta densidade de bons espécimes da alta sociedade que enchem o espaço e a rua. Saindo-se da hora dos mosquitos acelera-se pelo período do jantar, já toda a gente navega em copos de gin e whiskey, um grupo de betos rurais pede aguardente e imitam uma pega de caras com um dos menos peludos do grupo, há alguma fricção entre machos invisível a Miguel mas que Adão aproveita como pretexto para se agruparem a duas miúdas que parecem do seu campeonato.

- Não tarda nada temos tourada aqui dentro.
- Estás a convidar-nos para sair daqui? Bora!
- Ahahah - Adão surpreende-se com o sucesso rápido, excitadíssimo ri mais alto que todos e começa o festival de chistes geniais que não tento reproduzir porque não tenho metade da sua piada. Todos lhe admiram o brilho repentino. Miguel não está convencido com elas, são velhas, diz-lhe, para cima de 40 anos. Adão bebe álcool com a certeza de um profissional mas o mundo passa a parecer-lhe demasiado perfeito, excepto quando lhe parece uma merda de futuro negro. A miúda em quem Adão firmou os ferros é a mais gira, a mais afoita, mas também a mais velha. Tem 45 anos, a miúda, e uma filha adolescente que o faria ponderar a pedofilia, tem botas de pele de cobra, aceita engates dos anos 80, enfim, no meio do paraíso terreno em que se transformou este dia e esta noite, esta mulher é como um São Pedro com saudades dos prazeres da carne. Miguel afasta-se e leva com ele o par que lhe calhou, por cavalheirismo apenas, e ela percebe-o. Adão desaparece à porta com a mulher que parece sua tia.

O local começa a fechar as portas e transforma-se num bar de engate em estância balnear, Miguel subtilmente ostracizado à chegada, acaba por fazer amizade com a dita mulher amiga e com uma das irmãs Saldanha, óptima, moreno-loira de olhos verdes-azuis-acastanhados, e que se mostra um bilhete convidativo para qualquer lado que não para casa sozinho. Não consegue desfazer-se da velha de 37 anos.

- 37 anos, só? Pensei que fosses mais velha.
- Que idiota - diz a companheira de noite cuja amizade se tornou elástica, relatado apenas neste tom dir-se-ia que ela lhe ia despejar um copo na cara, mas estão os dois em esticada brincadeira de bêbados de surpreendente familiaridade, Inês Saldanha de 29 anos ri-se entusiasmada pelo abuso Miguelista, quase excitada por reconhecer ali a matéria arrogante de quem faz amigos entre os rústicos, mas não, nem Miguel teve essa intenção, nem iam ficar sós, que uma velha de 37 anos tem o seu orgulho de empata fodas. Eventualmente um Pereira Coutinho Ricciardi de Castro Laboreiro mete conversa com Inês e leva-a ao Lux.
- Querem vir? - diz ainda Inês enquanto o rapaz tira a chave do Jaguar que tresanda a Banco Mau.
- Obrigado, mas combinei com o porteiro nunca mais aparecer à frente dele na vida - apenas a mulher de 37 anos se ri, Inês esboça um sorriso confundido e o rapaz loiro de barba forte ignora-o profundamente.

Adão não sabe onde está, sai da porta de um prédio velho e acende um cigarro ao contrário. Depois acende outro cigarro ao contrário. Por fim acende um cigarro do lado certo, olha em redor e parece-lhe distinguir a Rua da Escola Politécnica à esquerda, mas era a Conde Redondo. Ainda recente flutuam imagens de luzes baixas, lençóis de seda, lábios borrados, o toque felpudo da base exagerada e de um rabo quase bonito mas flácido, e a preocupação constante por não fazer barulho para não acordar alguém que dormia no quarto ao lado. Uma erecção pouco consistente por consequência e tudo e ainda do vinho, que a dona da casa se esforçou por reafirmar num broche desastrado que envolvia incisivos. "Táxi!" não parou. Desce a rua a pé, passa pelas mulheres barbudas, olha duas vezes para um transexual bonito e luta com a sua consciência. Mais abaixo pedem-lhe lume e ele reage aos berros. Noutra rua a subir passa um carro cheio de gente e música e gritam-lhe algo imperceptível, ele já não tem forças nem criatividade para criar a má índole de quem lhe gritou obscenidades, resmunga entredentes contra os filhos da puta em geral.

São 4 e tal, o álcool não passa, o que se passou há 5 minutos parece-lhe desconexo com o que se passa agora, tudo são memórias soltas, as pedras da calçada ainda ali eram oblíquas, fachada, passeio, estrada, jardim, as imagens rodam e não se colam no mesmo plano, não é fácil entender o caminho, o som está em mono, o ruído de fundo está marado, está cansado, está tão cansado. Deita-se num banco à sombra de um abutre num candeeiro.

- Barnaaardo...
- Tou, então meu, o que é que se passa?
- Estás bonzinho?
- Puto, vai-te foder, estás-me a ligar a esta hora? Passa-se alguma coisa que mereça que me acordes a esta hora?
- Estou a ligar ao meu amigo. Não posso? Gosto tanto de ti puto.
- Olha, vou desligar.
- Espera aí, estou na merda.
- Então Adão? O que se passa contigo caralho?
- No passa nada, qué no passa nada, eheheh...
- Adão, foda-se, porque é que me ligaste? Estás na merda porquê?
- Porque eu sou uma merda, o teu amigo é uma merda de um gajo. Fiz merda. Outra vez, fiz merda outra vez. Enrolei-me com uma miúda, muita gira, mas mais velha. Estou deprimido. Linda, morena de olhos verdes, epá, chuac! Daqui! Ias-te passar. Uma beca flácida. Estou todo fodido, estou aqui num jardim, acho que é o Jardim Constantino (não era, obviamente, já estava no Príncipe Real) bem giro. Adoro a Eva, a Eva é a mulher da minha vida. Ela é fodida, trata-me abaixo de cão, mesmo tipo, abaixo de cão. Sabes como é um cão? É abaixo disso. Que puta!
- Ouve, vai dormir. Amanhã falamos melhor, pode ser? A Madalena já se está a passar. Já tive que me levantar da cama para falar contigo. Prometes-me que te metes num táxi para casa? Estou?

Adão deixa cair o telefone, salta a bateria e Bernardo aproveita para tirar o som ao seu, a custo conforta-se fingidamente no facto de Adão ser protegido por Baco, desde sempre, o sono e a paciência não o deixam preocupar-se mais.

Fica sentado no banco de jardim sem segurar bem o pescoço a olhar para o ecrã aceso do telemóvel. O momento chave da depressão alcoólica, que anda sempre a rondar o suicídio social. Adão é uma pessoa igual a toda a gente. Queria ser melhor do que é na prática. Choca-se com as suas próprias atitudes, corrige-se por períodos curtos e volta a cair nas suas próprias armadilhas. Casa, escritório, Eva, putas, vinho maduro, mãe, grandes amigos com vida própria. Sem os outros é o quê? Criou o quê? Onde está aquilo que perseguiu? Bom, perseguiu o quê? Quem lhe ensinou o que havia de ler, de ver e de ouvir? Quem fez dele aquilo que ele é? Na verdade foi criado por uma amálgama de coincidências educativas, como toda a gente. Vendo bem resultou melhor que muitos, vestiu a camisola do empreendedorismo sem escrúpulos e isso deu-lhe uma vida mais ou menos estável. Isso é que importa, para tem horror à sua própria morte e apenas gere o presente: a sobrevivência.

O telefonema seguinte vai para a Sara Albuquerque. Uma viagem inconcebível de 15 minutos pelo egoísmo insocial de Adão, pelo seu profundo Id filtrado a peneira larga que fixou uma obsessão apaixonada na ex-namorada de um ex-grande amigo. A Sara é uma miúda amplamente pretendida, e a compleição física extraordinária é apenas um bónus inacreditável, é alguém que se pretende logo à partida para ter filhos e criar raízes em qualquer lugar que ela decida, caso se consiga sobreviver ao seu temível sarcasmo de mulher feliz e de bem com os outros. Até terminar a relação com aquele cujo nome não será mais lembrado apenas tinha socializado com Adão por intermédio do namorado, depois disso foi alvo constante das suas emboscadas patéticas forjadas nos meandros das partilhas públicas do Facebook e no átrio do Holmes Place de Alvalade, para onde Adão tinha que ir de transportes públicos baldando-se do escritório antes do fim do dia. O seu amigo naturalmente deixou de o ser quando se soube disto. É impossível adivinhar o que é dito por um bêbado irrazoável a uma rapariga que mal conhece, tão experiente quanto assustada às 5 da manhã de um dia de semana, mas o telefonema durou 14 minutos e 23 segundos, e não há quem assegure que a Sara não vive já com outro namorado, que não é outro tipo do Direito, ou um porteiro de discoteca, ou um dealer da Bela Vista. Não há quem assegure que foi com ela que ele falou.

Acorda num táxi, com um homem a puxá-lo para fora do carro "Está entregue chefe", não se lembra de pagar a corrida, porque o taxista encostou o carro quando ele adormeceu e tomou a iniciativa de lhe vasculhar a carteira. Reconhece a porta de casa a 20 metros. Novamente afluem memórias recentes de um porteiro obtuso, de uma fila numa casa de banho de mulheres, "Que idiota!" alguém desse grupo lhe dizia, imagens de notas e mais notas a sair do multibanco e da carteira, imagens suas a dançar sozinho numa pequena clareira de gente bêbada, talvez menos que ele. Cruza-se até à porta de casa com pessoas do seu quotidiano sem as ver, deita-se na cama de Eva que tem as costas bronzeadas e cuecas brancas, tenta encostar o carro à praça, mas ela levanta-se de forma automática num salto e vagueia pela casa atordoada, volta ao quarto e Adão adormeceu, vê-lhe mensagens e chamadas no telefone sem grande emoção, vai beber água, toma banho, lava bem a cara, lava bem os dentes branquíssimos, bem demais, vai à net ver casas para alugar sem grande intenção de o fazer.

- Estou?
- Bom dia.
- Olá. Madrugaste - bocejo - Ele já chegou?
- Sim. Chegou há 15 minutos. Caiu na cama.
- Estás bem?
- ...
- Eva?
- Não sei. Quero estar contigo.
- Queres passar aqui? Já tomaste o pequeno almoço?
- Não é de comida que preciso. Passo aí.

Na rua o sol das 8 já aquece demasiado, Eva sentia um frio nocturno entranhado na pele desde ontem ou desde o Inverno e o calor sabe-lhe a protecção paternal, protecção que Adão lhe dava ontem e há milhares de anos, e que crescentemente se inverteu até se tornar no peso da responsabilidade de cuidar de um homem preso na adolescência que destrói tudo em que toca, e o amor se transformar em dependência do ódio. Hoje será outro dia, eventualmente.