as pequenas mortes

a Júlia fechava o bar e ficávamos todos lá dentro, muito bêbados, enquanto ela contava o dinheiro da caixa. a confiança entre o grupo era de tal forma, confiança cega de pessoas da noite que acham que encontraram as almas gémeas no fundo de copos de wishkey e cerveja, que por vezes as contas não batiam certas e todos queriam contar o dinheiro, e ela deixava. o primeiro que contasse mais dinheiro do que era suposto haver, fechavam-se as contas, e prosseguia-se noite fora a tirar imperiais, a fazer tostas mistas, linhas de coca, teorias da conspiração e da relação conjugal, etc.

por volta desta hora (três, quatro), com a porta do bar fechada, todos os casais se desfaziam e acabávamos todos em conversas privadas com a namorada do próximo, geralmente de entrosamento facilitado. e a piada era essa, não haver pinga de adultério ali, apesar de todas as bocas trocadas em conferência aberta escorregarem para o facilitismo da piada swing. disse-me o Pedro certa vez enquanto eu fazia uma massagem nos pés da Sofia para ir com ele à casa de banho, se a minha pila não fosse muito maior que a dele, que tinha o seu aval para levar a Sofia a dar uma volta. era uma piada, disse-o e repetiu noutras ocasiões para toda a gente se rir, mas em privado diria a mesma coisa, sobretudo porque ele queria comer a Júlia desde que eu me lembro.

havia um entendimento tácito de que tínhamos que ter cuidado, alguns do grupo eram mais constantes, eu e a Júlia, o Pedro e a Sofia, o Manuel e a Rita, se estávamos só nós as conversas eram mais ordinárias mas com o day after mais presente. mas se por acaso havia alguém solteiro, se valesse a pena e era raro deixar alguém lá ficar que não valesse a pena, era todo um bando de papagaios para um estendal curtinho. foi numa dessas ocasiões que conhecemos a Jessica, uma loira de cabelo solto, surpreendentemente inteligente e de ironia fina (finíssima pá), de sorriso aberto e gargalhada genuína. era aspirante a actriz, na época da goldrush televisiva.

por sorte minha, a Júlia era afoita e viciada em fazer toda a gente gostar dela, cedo descobriram afinidades femininas e passavam noites a fim a gozar com os homens em geral, comigo em particular. a Jessica engraçava comigo também, notava-se na forma como me picava com desgarradas libertinas acerca da minha fraca virilidade, acompanhadas de sorrisos, que interpretava como "quero-te comer enquanto a tua namorada observa".

uma famigerada noite que começou com o aniversário de alguém e que trouxe muita gente nova ao fecho privado do bar, a Jessica foi elevada a habitué por contraste, passou para trás do balcão, ajudou nos shots e imperiais e embebedou-se terrivelmente com a Júlia, a ponto de o Pedro me vir buscar à mesa quando eu conversava com duas dinamarquesas não me lembro em que língua, para ir ver o que se estava a passar: Júlia e Jéssica aos melos na cozinha. Pedro pôs-me a mão no ombro e disse-me sentidamente "cabrão".

saímos da cozinha desorientados, tirei um cigarro, naquela altura fumava quando não sabia o que fazer, e o Pedro perguntou-me se não queria antes ir com ele à casa de banho dar uma linha. fomos à casa de banho mas não dei linha nenhuma, não queria gerir aquilo com a impetuosidade da coca. "leva-me contigo" disse-me o Pedro "podes foder a Sofia sempre que quiseres, ou melhor sempre que ela quiser", mais um golpe de barro à parede do nosso amigo nocturno que tranquilamente me veria em cima da namorada, mesmo que não pudesse comer a Júlia, desde que o mundo pudesse ser lindo como sempre foi, e ele pudesse acreditar que seríamos sempre amigos, e o cor de rosa fosse a cor do negócio dos bares. eu também queria acreditar que seríamos sempre amigos, mas geralmente não conseguia encarar aquelas pessoas à luz do dia, o que dificulta uma amizade ortodoxa.

saímos da casa de banho e já só o núcleo duro restava, Jessica e Júlia tinham saído do recontro da cozinha, e agora mais calmas com a língua, mas mais agarradas ao rabo uma da outra e em performance teatral para os nossos amigos, começaram a planear matar-me. morte por sexo foi a escolha óbvia, mas antes Lux, uma decisão que eu não entendia, porquê Lux?, vamos só perder tempo, a noite está decidida, quero morrer depressa.

Pedro, Sofia, Rita e Manuel, enterneciam-se com o nosso three-way porvir, eles mais que elas, sugeriu-se um bacanal mas Júlia e Jessica não estavam para me partilhar com homens. notei alguma satisfação entre eles que eu não fosse já para casa com elas, adiando a certeza dessa inveja que sentiam. íamos ao Lux então, últimos xixis, e pela primeira vez pude perguntar à Júlia sem palavras se aquilo era mesmo para ir para frente. "acho que sim" disse-me, "sabia que ias adorar". estávamos os dois agarrados aos beijos quando a Jessica se aproximou, agarrámo-nos os 3 e beijámo-nos os 3, com os holofotes acesos sobre o meu beijo com a Jessica. só o Pedro viu e agarrou-nos também, a velha piada do empata-fodas, resulta sempre.

com a confusão de fechar o bar, com Pedro e Manuel ansiosos como miúdos para me fazer perguntas, dar sugestões, fazerem-se convidados, as miúdas foram todas juntas de táxi antes de nós, e eu só pensava que ainda me ia fugir tudo das mãos, bastava que embebidos em álcool como todos estávamos alguém perdesse tempo desnecessário a falar com um amigo chato, a discutir com um taxista, à espera na fila do multibanco, para o clima e os caminhos se descruzarem ou as linhas do destino sexual, pelo contrário, se emaranharem por completo e eu acabar no Lux a conversar com um indiano que vive em Chicago e que está cá a fazer um doutoramento numa cena desinteressante ligada à criação de perus.

à porta contudo, o Miguel cumprimentou-nos espirituoso "boa noite, as suas duas esposas já entraram" sorriu, e rimos todos muito, porque era o Miguel que nos dirigia a palavra, eu ri mais que os outros por confirmar que estava tudo sobre carris. entrámos, era daquelas noites em que parecia que havia ecstasy no ar condicionado. logo no bengaleiro encontrei a Mia, óptima, uma ex-relação mal terminada, a conversa correu lindamente para tantos anos de frieza protocolar. estava divertida, disse que eu estava giro, acariciou-me o braço de alto a baixo, perguntou se ainda estava com a Júlia, quando o confirmei fez um ar desiludido de sorriso pornográfico, pronto, estava completamente bêbada, mas bêbada conta. a minha hiperconfiança acumulada até aí facilitou-me a despedida. enquanto o Manuel encontrou a Rita, o Pedro e eu fomos procurar as dissidentes, primeiro no andar de baixo, no estado em que estavam era de prever que estivessem a dançar nesta selva. não estavam. encontrámos dois amigos do Pedro, um deles tinha visto as miúdas no andar de cima e perguntava-lhe quem eram as duas amigas da Sofia, estava doido e o Pedro disse-lhe "têm namorado". subimos, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei, pelo caminho encontrei, depois três gays nas escadas pararam-me, olhos muito abertos "ai filha!" perguntaram o que usava para ter aquele bronze, "melanina", um deles não riu. eu era o rei, furava pela multidão com olhos postos em mim, daquelas noites em que Deus me pintou de dourado e tenho a certeza que vou acabar na cama, eventualmente sozinho.

o Pedro queria ir outra vez dar na coca, esperei por ele à porta da casa de banho, tenho ideia que a minha vida nocturna foi muito passada à porta de casas de banho. apareceu a Marta que recolhia copos, fez a festa da nossa relação nunca consumada "Zé!" abraçou-me com o braço que não tinha bandeja, e os seus beijos lambidos soaram-me melhor que nas outras vezes, "a Júlia está ali com a Jessica, ao pé da varanda, estava a dizer-me que estava só à tua espera para irem embora". óptimo! havia uma máquina de preservativos nova na entrada da casa de banho, coisa em que nunca antes tinha reparado, nem voltei a ver ali depois. interpretei aquilo como um sinal, optei por abastecer-me, em casa não havia nenhum dentro do prazo, só uns apertadíssimos que me deram na rua, certamente sobras do mercado asiático ou modelos para distribuir nas escolas primárias, a Jessica podia não achar piada à minha facilidade em ignorar regras básicas de sobrevivência. que digo? a Júlia é que podia não achar piada. havia 3 tipos de preservativos em duas quantidades, escolhi uma caixa de 3 preservativos de sabor a mentol, porque pensei bêbado que o mentol era melhor para desenjoar do álcool e porque éramos 3. foi um raciocínio infeliz, fruto da pressão das circunstâncias.

o Pedro saiu da casa de banho, encontrámos imediatamente a Sofia "Zé, a Jessica está um bocado mal" o quê? não quis entender à primeira, falávamos aos ouvidos uns dos outros por causa da música para demolir edifícios, quando percebi não quis acreditar que ela estivesse assim tão mal, mas chegámos perto da varanda e Jessica tinha a testa pousada na mesa, já tinha ido vomitar várias vezes e não queria que lhe tocassem. era a primeira grande bebedeira da sua vida, dizia ocasionalmente. Júlia amparava-a e olhava para mim "olha menino, kapputt!", estava mais preocupada que desiludida. "água" disse eu ao ouvido da Jessica "bebe água, muita água, isso vai passar" num esforço patético para endireitar a minha vida.

a Jessica veio dormir a nossa casa, completamente derrotada, deitámo-la no sofá. Júlia deixou-me assistir enquanto a despia e a Jessica murmurava "perdoem-me! que vergonha! podem fazer de mim o que quiserem desde que não me abanem muito", eu fui buscar um cobertor para se tapar e um balde que coloquei aos pés do sofá "Jessy, está aqui se te sentires mal". agradeceu-me imenso.