consanguinidade

ao fim de anos de convivência com uma pessoa deixamos de prestar atenção a detalhes, com uma vida demasiado preenchida pela necessidade de fazer dinheiro, pelos sonhos esparsos, pelos filhos, pela crise, pela tentativa de não deixar tudo desagregar-se, facilmente a Filipa estaria a enganar-me sem que eu percebesse. na primavera desta relação... no verão, vá lá.. aí não, aí eu estava atento, ela também, não havia minuto fora de casa que não soasse a adultério, tudo bem explicado quando chegasse, cada olhar, cada "boa noite", cada curva até casa. resquícios de relações mal passadas transportadas disfarçadamente para essa nova esperança, o cadáver esquisito que saltou do armário à primeira conversa fora de tom. mas enfim, foi definhando, confio na Filipa como se não houvesse forma de me sentir traído. confio. não vejo motivos nela para me trair. por exemplo, por vezes penso que morreu sexualmente, já não acha piada a actores rebuçado, não fala de sexo nunca, se faço uma piada que envolva pila sorri distraída, fode em piloto automático ao domingo à noite. mas alguém poderia argumentar que o problema sou eu, que não lhe interesso, que não me esforço por lhe despertar interesse, que alguém mais homem que eu, talvez até assexuado mas adulto, sensato e influente ou filósofo revolucionário e com barba, a arrebataria e a faria deixar-nos a todos cá em casa sem roupa lavada, nem mãe, nem amiga, nem sexo, nem nada. não se trata disso. posso garantir que ela deixou de ver a humanidade dividida em géneros, no sentido mais desinteressante do conceito, e eu faço parte do seu clã, uma inevitabilidade. ela parece-me feliz. pergunto-lhe:

-Filipa.
-
-Filipa.
-hã?
-és feliz?
-
-Filipa..
-o quê?
-és feliz comigo?
-claro que sim.

parece-me feliz. também deixou de prestar atenção a detalhes, é natural, como eu deixei. posso traí-la sem que ela o sonhe. posso traí-la com a Sónia, que isso lhe é invisível. não tenho com a Sónia uma relação profunda, por isso é satisfeita em cada troca clandestina de beijos na cozinha em jantares de amigos, cada mão nas coxas descobertas por baixo da mesa, é obviamente isso que alimenta essa relação, a clandestinidade. e é essa relação que alimenta a minha relação com a Filipa e a relação da Sónia com o Pedro. serve perfeitamente esse propósito e sabemos bem como conduzir e manter a tesão no seu auge e as hormonas a salivar pelo fim de semana. não há discussão do tema, não há troca de mensagens insonoras, nem telefonemas a meio de uma tarde de trabalho. não nos falamos ao longo da semana. só falo com o Pedro à sexta feira e pergunto:

-jantar cá em casa?
-pode ser, deixa-me falar com a Sónia. mas em princípio sim, ela quer sempre.
-ok, também ainda não falei com a Filipa, mas ela também quer sempre.