talvez fosse o Goucha

fui, algures na minha adolescência, alvo de assédio telefónico anónimo. aconteceu-me em diversas situações, geralmente dirty talk ouvida sob um timbre feminino que me envergonhava imaginar ao vivo, sobretudo naqueles telefones de plástico dos anos 80, que forçavam visões de cabelos frisados, popa e olhos pintados de cores complementares degradé. eram sempre ensaiadamente expeditas e directas e acompanhadas de risos de cúmplices menores no plano de fundo. apesar do sabor pueril da atitude, deixava-me sempre algo diminuído não fazer uma puta de ideia de quem poderia estar do outro lado, não saber se era por desespero amoroso ou uma forma de passar com as amigas a tarde livre de uma semana escolar. nunca diziam como é que tinham arranjado o meu número, mas sabiam o meu nome e por vezes mais qualquer coisa. no momento eu achava piada, algumas ligavam no dia seguinte, mas como eu raramente estava em casa, raramente as atendia e deixavam de ligar.

uma delas não. uma delas durou uns meses, ligava sozinha, silêncio no fundo, ao fim da tarde, encontrava-me sempre em casa, a conversa não incluía ver-me nu, começou por falar apenas de uma amiga comum que lhe arranjou o meu número mas que tinha que permanecer incógnita. falava de si e perguntava-me como me corria a mim a vidinha. inicialmente achei demente contar a minha vida a uma pessoa que não conhecia e não se apresentava pessoalmente mas com o passar do tempo e das inconfidências que me fazia acerca da própria vida, acabei por fazer também algumas, chegava a desabafar. perguntei-lhe diversas vezes o que ela esperava alcançar com aquela relação, ela disse que não sabia mas que não tinha coragem de combinar nada comigo. imaginei que fosse arraçada de boi-cavalo e que achasse que eu ia deixar de a atender depois de a ver. lancei essa pergunta, como um catalisador, uma vez que aquilo estava a transformar-se numa rotina difícil de explicar aos meus amigos, mais ansiosos que eu que esta história acabasse em sexo. ela respondeu que não era uma questão de ser feia, só que nunca teve coragem para falar com os rapazes de quem gostava e eu era o primeiro. a sorte.

nunca me disse o nome, mas falávamos das nossas famílias, do curso que queríamos seguir, dos pais, dos amigos, de festas, do benfica, de relações. a confiança evoluiu para o ponto de um dia me desabafar o medo que tinha de estar com um rapaz, sexualmente falando. eu, do alto da minha experiência pubertária, disse-lhe em tom paternalista a camelice "só dói a primeira vez".. "não é da dor que eu estou a falar" respondeu ela, "é da situação toda, de não saber fazer as coisas, ou de não conseguir ir até ao fim e ficares triste comigo"... "eu? mas estávamos a falar de sexo um com o outro?", o silêncio do lado de lá foi infinito. mas eu não estava a repreendê-la, "ouve, fiquei surpreendido, só isso. também me agrada a ideia" comentário imbecil, mas funcionou, ela voltou a respirar, aliviada e a rir-se nervosamente. pensei na altura que a miúda se considerava minha namorada, admirei a coragem de dizer aquilo sem hesitar, mas não seria coragem, seria a completa ingenuidade. a mesma ingenuidade com que mantinha aquela relação telefónica comigo e na qual se sentia confortável sem fazer qualquer esforço para que ela evoluísse para o plano da sanidade mental, das pessoas normais (pois, na altura pensava que existissem), para uma queca presencial!

e finalmente chegou ao dia D.
ligou-me à hora do costume, nos últimos dias eu não tinha estado em casa, não falámos. desta vez havia um ambiente grave, estava chateada com alguma coisa. mesmo assim perguntou-me o que tinha feito nesses dias, mas empregou o tom que mais tarde na vida reconheci como o da namorada que está só à espera que eu lhe pergunte se está tudo bem (e ela responderá que sim, que está tudo bem, no mesmo tom, para eu perguntar outra vez). perguntei "está tudo bem?"
- mais ou menos (reticências).
- mais ou menos?
- sim.
- queres aprofundar?
- eu vi-te ontem.
- ah foi? mas não foi a primeira vez que me viste, ou foi? :) (um sarcasmo na água)
- vi-te à porta do bloco C, eu estava a ter português.
- à porta do bloco C...? ah...
os silêncios ofegantes sucediam-se a cada troca de frases, eu lembrei-me do que tinha estado a fazer à porta do bloco C.
- já percebi o que se passa. e então? estás triste por isso?
- não estou chateada, eu sei que não tenho o direito de estar chateada. nunca falámos em exclusividade. não sei. não sei o que hei-de dizer... quem é a rapariga?
- é a marta. estou com ela há uma semana, acho que somos... tipo... namorados. (e não entendo o que queres dizer com exclusividade (mas poupei-a ao ridículo)).
ouvi-a chorar do outro lado, o choro abafado das mulheres em campos de concentração à noite (...), tentei continuar a conversa, acalmá-la, mas como o choro não era assumido fiquei sem palavras de consolação, que naquela idade seriam sempre passíveis de um calduço do espírito santo. disse-me "está bem, tenho que desligar" com o som do ranho pré-explosão emocional a entremear algumas das palavras gemidas, e com um simples pousar de auscultador deixou órfãos quase 3 meses de paciente evoluir de confiança mútua. pensei que voltasse a ligar. não. mas assim revelou-me em estreia uma das primordiais diferenças entre mim e uma mulher e que se verificou desde aí: ela submete-se às coisas mais ridículas e insensatas quando gosta de mim, mas quando desiste eu deixo de existir.