a vida a dois

seguramente não sou caso único entre os homens, toda a vida tenho sonhado viver sozinho, numa casa funcional, simples, oca, na minha desarrumação minimalista. toda a vida vivi em matriarcados, ou seja, nunca tive uma casa de banho arrumada, 95% dos items que lá se encontram não me pertencem. cremes, vernizes, secadores, alisadores de cabelo, vibradores, convivem todos com a minha escova de dentes. o papel higiénico acaba-se no mesmo dia em que substituo o rolo, o meu champô também é amaciador e deixa-me o cabelo seboso, aliás nem sequer é meu porque não sou eu que o compro nunca, mea culpa. de alguma maneira tem-me escapado sempre a oportunidade de me confrontar com a auto-suficiência por períodos maiores ou com a minha incapacidade para tal, precisava de saber isto.

a primeira pessoa com quem vivi foi uma rapariga que espalhava a roupa usada pela casa, por vezes em cima da cama, e conseguia dormir ali sem tirar a roupa de cima. se não a amasse, acordava-a aos berros todas as noites quando chegava a casa exausto a precisar de cair na cama. assim simplesmente recolhia a roupa e metia-a no cesto, e ouvi-a reclamar por ter acendido a luz trémula da minha cabeceira. a Sofia obrigava-me a cozinhar feijão com linguiça de madrugada, quando eu seria capaz de passar dois dias a iogurtes e sandes de queijo só para não ter trabalho, e como não tínhamos máquina de lavar loiça, a cozinha era Chernobyl por períodos de 48 horas, até que já não houvesse panelas, "alguém" as lavasse e eu as sujasse outra vez. depois refizemos o contrato da cozinha, passei eu a lavar a loiça e ela a cozinhar. aí raramente comíamos em casa.

a dada altura morei com um casal num soft threesome, fodiam sem pudor na minha presença. a namorada, surpreendentemente uma neat-freak, vinha depois mostrar-me os preservativos usados e deixava-os disfarçadamente no meu quarto, talvez porque estivesse farta de mim ali em casa, talvez por ser frita dos cornos. lá está, tomava a pílula e fodia com preservativo o seu namorado de 7 anos. também tomava banho à minha frente, por isso a coisa foi-se equilibrando (para mim uma personalidade devassa compensa certa dose de cabra de merda). até que enfiei uma amiga mais frita e ruidosa que ela lá em casa, pegaram-se, e acabei por ser posto na rua. a casa de banho e cozinha eram forradas a caixinhas kitsch e bibelots fashion, gatos que dizem adeus, torre-efféis cantantes, nossa-senhoras fluorescentes, cartazes de filmes indy-cliché para gajas, a Amélie Poulain por cima do autoclismo obrigou-me a longos minutos de ansiedade em frente à sanita, tenho uma shy bladder, e a Amélie tem ar de quem não faz sexo oral por convicção de virgem feminista ou de quem já teve um namorado moçambicano de 1 metro e 94 (ler, pila de 25cm). de vez em quando eu mandava um bibelot para a sanita para aliviar a tensão.

apenas morei sozinho em momentos de transição, quando estava mais ocupado e ansioso em enfiar-me noutras camas do que em compor a minha toca. nessas alturas ia ao supermercado e um só saco de compras bastava para enfiar tudo aquilo que preciso para sobreviver, higiene, comida e sexo. nem sei bem o que a higiene faz nesta lista. cheguei a comprar uns móveis IKEA, à falta de MUJI, para a minha eterna casa nova, chegou a ter um ar próximo do confortável, até que dei guarida a uma artista plástica que trouxe o cão, um rafeiro com um problema de pele que me mijava no terraço, nas ervas que usava para a cozinha. esse cão, o Já Disse, roubou-me para sempre o lugar no sofá, já que o seu problema de pele me impediu de tentar reconquistá-lo. além do Já Disse ela trouxe as suas esculturas multimérdia, roubou-me o escritório para a arte robótica, sujou-me o pinho de Riga com tinta de esmalte e pintou numa parede um esquema de montagem de uma impressora-saca-rolhas-ipod que nunca construiu, apesar de querer convencer-me que aquela parede era a própria "peça" e era dela por usucapião. um dia sozinho em casa reparei que a mesa de centro tinha o nome dela gravado com uma chave ou quem sabe, uma catana. ela tinha vivido com uma mulher mais velha, rica que lhe pagava para viver e foder. mas eu não era velha nem rica e cansei-me de sustentar uma criança crescida, de quem gostava muito e que fodia como gente grande. decisões difíceis estas que envolvem perder uma gaja boa e fodilhona. o Já Disse morreu na mudança.

também enquanto vivi com a minha mãe, por falar em gaja boa e fodilhona, a desarrumação apocalíptica era um modo de estar na vida, com a diferença de eu nunca ter reparado nisso, porque era organizada e porque cresci no meio daquela parafernália de futilidades. se olhasse para cada objecto isoladamente encontrava uma razão para ele existir e estar naquela prateleira, mas tudo junto formava uma espécie de loja do chinês, de coisas que foram usadas apenas uma vez, outras que nunca foram usadas e outras que nunca poderiam ser usadas porque eram inúteis. o problema é que havia prateleiras a mais e a minha mãe só queria dar-lhes uso. penso que terá sido por isso que o meu pai saiu de casa. cheguei a ponderar aproveitar para fugir com ele, ir viver para a Expo que nem um novo-rico, mas seria patético tendo em conta que fui praticamente eu a expulsá-lo de casa, como um gorila chegado à adolescência. também teria sido sui generis tentar dividir tarefas com alguém que pensa que uma casa é vendida com uma mulher lá dentro.

quase me esquecia da Antje, vivi 2 meses com uma alemã, mas como era alemã, não há nada para contar. a Antje estava na vida como quem está sentado na sala de estar da Farnsworth a ler Kierkegaard ou António Aleixo. não se vive, coabita-se com uma pessoa assim, e ela tem de nós apenas uma suave lembrança.

gosto de viver com mulheres, não tenho dúvidas, senão não tinha recaídas constantes e não tinha decidido este ano viver o resto da minha vida (sim, um passo de cada vez) com uma pessoa insuportavelmente injusta e casmurra no que respeita à partilha do mesmo espaço, que enche a casa de mobiliário com "personalidade", que me permite escolher a cor do tapete da sala que ela já reduziu a duas hipóteses, que é capaz de empilhar correio e tralha em qualquer superfície plana mas não é capaz de me ver a mim a fazê-lo sem se irritar, que me obriga a despachar os assuntos e arrumações pendentes que fiquei eu de tratar só para eles ficarem pendentes mais à frente na inércia dela, que chora baba e ranho quando eu fujo ao que ela esperava de mim: a confirmação de que ela teve uma grande ideia para nós "ok, então eu concordo" "não, assim não! eu quero que tu sejas sincero" "mas quando eu sou, tu choras" "porque tu não percebes... hic hic hic (choro convulsivo)!" e é assim que um homem aprende a ler pensamentos, para sobreviver.

eu gosto de chegar a casa e não poder ver a bola porque ela está a ver uma série de médicos, porque sinto que estou a acumular créditos para quando houver um clássico e eu quiser convidar amigos e cerveja. gosto quando fico na cozinha depois do jantar a arrumar a loiça da e na máquina enquanto ela vai para a sala e enfia-se toda na internet, porque a seguir posso ir ler sem preocupações de ser boa companhia. também porque isso implica que as vezes que mexi numa máquina da roupa se contem pelos dedos de um pé. gosto de resolver as merdas de bricolage com que ela me persegue porque quando estão resolvidas ela faz-me sentir que vive com o MacGyver, se eu vivesse sozinho não tinha esta compensação orgulhosa por reparar fios do candeeiro ou apertar os puxadores das portas. mas com muita pena minha, Júlia, viverei para sempre com a esperança de um dia ter a minha própria casa. não implica divórcio, não implica nada. só quero o meu T1 na Baixa, e podes vir lá jantar e passar a noite de vez em quando.

mestre dobras

saí hoje de casa com a perfeita noção de que não era um dia bom para ir mostrar-me para uma universidade. sentia-me com o estilo do Eládio Clímaco num dia de folga, se ele vivesse numa barraca. voltar à minha universidade traz sentimentos contraditórios. quando lá andei as raparigas tinham o estilo que se esperava de uma universitária, pullover pelos ombros, mangas dobradas, sapatões de vela com sola todo-o-terreno, poupas com gel. não, minto, isto era no secundário, na universidade usavam botas das obras e os cabelos eram ondulados por electricidade estática, e na universidade já havia uma ou outra rapariga que fazia professores e alunos comportarem-se como macacos, sim, havia uma ou outra que, dada a raridade, eram deusas (dos anos 90, convenhamos) simplesmente nunca eram da minha turma, eram da turma de um gajo qualquer das tunas. hoje as universitárias são modelos e actrizes e os universitários também. têm corpos de modelos fotográficos, trejeitos de estrelas de rock, têm a superficialidade social de colunáveis desempregados, mas têm memes próprios e uma estética geracional, que me deixam a leste dos conteúdos e das razões das suas gargalhadas e soberba. entrar numa universidade e ser completamente ignorado por hordas de gajas giras vestidas de forma comovente é uma experiência hostil para alguém que sente que no fundo não devia estar ali. ou aqui ou além. foi como a experiência de voltar ao meu infantário passados dois anos de ter saído de lá, por insistência da minha mãe, que as educadoras me queriam ver, tinham saudades e o caralho (andei lá até aos 9). quando lá cheguei ninguém sabia quem eu era, só havia educadoras que não foram minhas educadoras, os putos mais novos que nunca foram meus amigos, cresceram e não se lembravam de mim, alguns já tinham buço. na secretaria ignoraram a emoção de uma mãe pela boca de um puto de 11 anos, disseram que se quisesse podia passear pelo infantário, mas depois tinha que me ir embora. na universidade não me dizem para ir embora porque simplesmente não dão conta que estou ali, excepto a senhora da biblioteca "tá na hora de arrumar, vamos fechar daqui a 10 minutos" já sei caralho! ontem foi a mesma merda, não demoro 10 minutos a meter o computador na pasta, que idade é que julga que eu tenho? a minha tendência involuntária para perseguir ambientes do meu passado deixa-me desagarrado, anacrónico e sem grupo social. basicamente as mulheres são o meu barómetro de inserção, se me ignoram não pertenço, e tenho sido muito ignorado nos ambientes em que me movo, excepto por cinquentonas fogosas. anda foda-se, arruma as tuas merdas e baza daqui, diz-me uma bibliotecária ao ouvido.