Faixa de Möbius

A luz do sol entra por qualquer buraco, tem calor próprio, mesmo que concentrado numa porra de 5 cm quadrados. Se toca numa têmpora, sobretudo numa têmpora transpirada de álcool em excesso e pressionada por dentro pela consequente bomba cefálica que só por si impediria a merecida inconsciência por mais que 4 horas seguidas, proporciona um acordar lento e penoso. Adão esqueceu-se de fechar o estore. O quarto a nascente, adivinhe-se, nasceu virado para o sol, que não perdoa uma fífia para brilhar de manhã aqui dentro. Adão não nasceu neste quarto, mas doeu-lhe menos o nascimento que o acordar todos os dias.

Hálito de lamber corrimões, língua de vaca fumada, olhos de recém nascido, e torcicolo, todos companheiros de lençol molhado. A Eva já saiu de casa, fugiu do toque dele, levanta-se sempre mais cedo, sobretudo quando Adão se mija na cama.

Cigarro à boca, um resto de cerveja num copo na cozinha (tinha um bocado de cinza, mas só eu é que vi), senta-se na sanita a fumar e a cagar depois de ter vagueado à procura de não sei bem o quê pela casa alva. Duche com ele. Meia hora. De água a ferver, a lavar os pecados e os testículos.

A casa de banho é um salão, diz-se que foi uma biblioteca medieval, ao sair do banho Adão pára em frente ao espelho e observa a barba, tem um dia, mas é mal semeada porque Deus odeia-o. Máquina de barbear, não arrisca a lâmina, isto implica 5o'clock shadow logo de manhã. Looking sharp!

Ligou para o escritório.
- Adão, conta.
- Miguel, vou chegar um bocado atrasado. A Eva saiu de casa e deixou-me aqui trancado, estou há uma hora à procura da chave, mas ela deve ter levado e não atende o telefone.
- Ok Adão. Até já. Olha.
- Diz.
- Bebe água. E vai comer qualquer coisa antes de vires que estás com uma voz de quem acabou de comer um cagalhão.
- Foda-se..??

Miguel já tinha desligado o telefone. Como ousa?! Como ousa Miguel sugerir que Adão estava de ressaca? Que lhe estava a dar uma desculpa? Como ousa Miguel pensar? Adão perde-se logo de manhã na raiva que sente de o mundo ter dificuldades em adaptar-se a si, mas hoje menos obsessivamente, que a dor de cabeça lateja forte. "Um palhaço este Miguel" pensou, "está a ver se me fode, que cena feia, tss" abana a cabeça em desaprovação profunda, de desilusão paternal. "Qualquer dia fodo-o".

Ainda nu procura vestígios da noite passada no telemóvel. Dois telefonemas para a Margarida, zero minutos (não atendeu? ainda bem), outros dois para o Bernardo, um para a Sara, 14 minutos e 23 segundos. Foda-se, não. O horror instala-se quase ao mesmo tempo que a cobardia e decide esquecer que viu este registo. Não decide, esquece-se simplesmente enquanto pensa em masturbar-se antes de ir trabalhar. "Cabrão do Miguel, estás a dar-me baile, vais ficar à espera até me apetecer". Até lhe apetecer. A fazer o que lhe apetecer. Tem resultado bem este subterfúgio da culpa. "Vou fazer o que me apetecer, toda a gente à espera que eu me comporte como querem, a mim não me apetece, sou dono de mim. Tenho direito de fazer o que me apetece. Apetece-me gastar dinheiro, apetece-me foder, apetece-me beber, apetece-me mentir. Foda-se apetece-me! Caralho, não mandam em mim. Estou farto de obedecer." Na verdade foi uma vida inteira a desobedecer, a fazer o que lhe apetece, nem a anulação do superego é nova, mas a relatividade oscila na medida do desejo.

- Bernardo, então? Tudo fino?
- Adão, estás melhor?
- Melhor? Sim, estou óptimo. Porque é que não havia de estar bom? Foda-se..
- Por nada... Estás a sair de casa?
- Não, achas? Por acaso tive que vir agora a casa buscar uma coisa. E nada, apeteceu-me ligar.
- Ok, está tudo bem?
- Sim. Olha, nós ontem falámos, não foi?
- Sim...
- Eu sei que falámos, mas já não me lembro bem, tinhas-me perguntado qualquer coisa..? que eu fiquei de ver?
- Não, não perguntei nada.
- Hmmm.. ok, fiquei com essa impressão.
- Olha, tenho que trabalhar agora, ligo-te mais logo.
- Mas estava tudo fixe? Ficaste chateado com alguma coisa?
- Só com o facto de me teres acordado a mim e à Madalena às 5 da manhã.
- Foda-se já não posso ligar a um amigo quando me apetece? Só não percebi que era tão tarde, desculpa lá olha...
- Na boa. Caga nisso.
- Mas correu tudo bem, a conversa?
- Sim Adão, correu tudo bem. Estavas com os copos, mas dentro disso correu como previsto.
- Pois, estava um bocado. Foda-se não me lembro de muita coisa. Mas liguei à Sara, uns 15 minutos de conversa.
- Não sei o que lhe possas ter dito em 15 minutos no estado em que estavas, não queria estar no teu lugar.
- Bem caga, não quero pensar mais nisso, caguei na miúda.
- Acho bem. Olha, tenho mesmo que ir trabalhar, falamos logo.
- Sempre a despachar-me, caralho.
- Vá, abracinhos.

Em frente ao espelho do corredor vê o seu corpo semi-musculado de frente, não se vira de perfil, não fez natação em pequeno, é estreito, da espessura de uma pessoa doente. Vê melhor a cara. Rugas. Cabelos brancos. A campainha. A campainha? Vai à porta todo nu, espreita e não vê ninguém, levanta o auscultador e não ouve ninguém. "Qué esta merda? Falta de respeito a tocar a esta hora para casa das pessoas e depois não dizem nada, provavelmente é o cabrão do carteiro, que falta de civismo, tsc tsc".

No café, sempre ao balcão, engole meio folhado de salsicha de uma dentada e bebe metade da meia de leite, nunca gostou de meia de leite, ao sair chamam-no para pagar a despesa, esqueceu-se outra vez, o empregado sorri. Novamente no balcão o telefone toca.

- Estou?
- Adão!
- Quem fala?
- Rodrigo. Estás bonzinho?
- Olha o abertura! Está tudo bem, e tu? Porreirinho?

Rodrigo, uma das velhas ligações ao bairro da sua adolescência e ao rugby, tem uma proposta de jantar irrecusável, o novo restaurante de um amigo comum na Bica, degustação e bebidas à discrição, as meninas Saldanha, a Xuxu (a Xuxu!) e a prima (não sei o nome dela mas também é prima do Rodrigo e da Madalena do Bernardo), a Mafalda Viana e umas amigas assistentes de bordo, provavelmente um grupo que incluía a Mariana Sousa Macedo. Irrecusável. Aceita, com uma reserva suave, tinha até às oito da noite para chatear-se com a Eva. O dia já começava a parecer mais bonito, quase não lhe doía a cabeça, saiu do café com uma imperial na mão (afinal era praticamente meio-dia).

O dia no escritório passa rápido, entre fricções forjadas com o Miguel, que condescende superiormente numa arte da fuga desenvolvida ao longo de 10 anos de convivência funesta. Miguel gostava de espicaçar e depois dar o lombo. Ao fim do dia, depois de toda a gente sair, já conseguiu que Adão estivesse suficientemente à vontadinha para entrar na sua sala com uma garrafa de Johnnie Walker.

- Vai um copinho? Binsky?
- Ahahah!
- Ahahah, bora lá pá, já bazou toda a gente.
- Siga, vou lavar copos do almoço.
- Temos que trazer uns copos decentes para o escritório - Adão puxava duas cadeiras para perto da janela, uma vista deslumbrante sobre o rio e a praça D Luís I, onde já os romanos "fundeavam".
- Qual é a ocasião? Tens festa hoje?
- Olha-me este, sempre a julgar que sabe ler as intenções dos outros! Tenho pá, por acaso até tenho. A inauguração do restaurante de um grande amigo meu. Queres vir? Posso levar um amigo.
- Sou teu amigo? Então quero.

Bebem apenas dois copos no escritório mas conversam por três ou quatro. Adão tem indubitavelmente um carisma social que prende pessoas a uma teia de fascínio e preocupação como a um companheiro de guerra num posto avançado. "Falta-te? Eu arranjo-te!", "Sofres? Eu sofro contigo!". É fraternal e chega a compensar os momentos maus. Miguel sabe-o de longa data, já conhece as desilusões subsequentes, e deixa-se levar na mesma. Afinal é com Adão que tem as melhores histórias de copos, e as piores histórias de confiança traída. Falam da vida de Miguel em Londres, dos grupos de portugueses emigrantes na cidade, Adão diz que conhece perfeitamente Londres, e conhece perfeitamente os grupos de emigrantes porque uma grande amiga sua mora lá, aliás, dois grandes amigos seus, porque o melhor amigo dela também é um grande amigo dele, conhece perfeitamente Londres e o melhor amigo da sua grande amiga. Miguel não os conhece. Ou melhor conhece Londres apenas. Adão fala de Piccadilly, e da Tower Bridge, e de quando foi à Tate, onde viu o Banksy. Estava lá, o Banksy, a ver uma exposição e Adão reconheceu-o e foi lá falar-lhe, pagou-lhe um copo. Miguel ignora o momento confrangedor, pergunta-lhe se viu Brick Lane e Adão faz uma cara não treinada, Miguel corrige, "o mercado de Brick Lane", e Adão lembra-se em silêncio que Eva lhe falou em ver mercados e ele preferiu ir beber pints num pub incógnito enquanto Eva se divertia femininamente a ver "mercados" tsc. Diz que, ah sim, conhece perfeitamente Brick Lane e até pormenoriza o ambiente de feira. Miguel gosta da conversa porque fintando pela eloquência fantochada de Adão ele até tem piada. Apesar de se rodear de pessoas que começaram a cultivar os interesses e o futuro na adolescência quando ele andava interessado em ser adoptado pelos betos de Cascais e em ser convidado para as festas em casa do tio Patinhas, quando não está a tentar fazer uma demonstração de cultura plagiada dos melhores amigos escolhidos a dedo, até tem conversa de homem e um raciocínio bastante ágil, podia ser um stand up comedian com um laivo dramático. Aliás foi essa versatilidade que lhe permitiu agregar gregos e troianos no mesmo pote de amizades, aquele que gostava de ser o melhor amigo de toda a gente se ao menos conseguisse controlar o ódio que sente por quem se atravessa no seu fantasioso percurso de locomotiva rumo ao estrelato.

Quando a conversa entra na fase boa falam da vida, das relações, Adão abre o jogo da fragilidade conjugal, de como a dependência que os homens têm das mulheres os torna piores companheiros, quase se escrevia um blog com tanto experimentalismo pessoal, mas depois entram pelas miúdas do seu passado, e acabam a comentar uma ex-colega de universidade em comum, a Sara Albuquerque.

- Que coincidência do carapau! A Sara Albuquerque??
- Foi da minha turma, mas quem é que não conhece a Sara Albuquerque?
- Que mamões, meu deus, sempre a apontar o caminho.
- São o Norte e o Norte magnético.
- Ahah!

São quase nove horas, Adão esqueceu-se de se chatear com a Eva, que também não ligou, dir-lhe-á então a verdade quando chegar a casa, assim chateia-se depois do facto consumado e nem precisa mentir. Descem lentamente a escada, numa altura em que o álcool e o burburinho surdo da rua são o composto anestésico da antecipação, da excitação processional de um evento nocturno cheio de gatas. A rua fervilha de grupos entre os 20 e os 30 anos de onde só o género feminino sobressai a Adão, miúdas de calções acima das nádegas, vestidos leves e curtos, peitos de franga generosos que preenchem facilmente decotes largos. Miguel já sente a mesma emoção adolescente de Adão, embora com mais vergonha da sua própria libido proto-alcoólica e mais contido nas observações.

- Isto está a puta da loucura!
- Mulheres boas comendo meloas!

Param à porta do restaurante "A Peixeirada do Bairro" e Adão começa o folclore dos abracinhos e das gargalhadas de longo curso pelas muitas pessoas à porta de aperitivo na mão. "Grande Adão, nunca falhas. A Mariana Macedo não veio, caríssimo" diz-lhe o Rodrigo logo de chapa "Voou para um daqueles países com ébola, está de quarentena em Tróia". Adão procura disfarçar a primeira desilusão com uma irritação dissimulada "Ah sim? Que bom para ela" e passa às apresentações "Este é o Miguel, um grande amigo meu". Olá, olá, Rodrigo, Margarida, um beijinho, Miguel, olá, olé, Tomás, Mariana Pires de Lima, Barbosa de Mello, José Coutinho, Caetana Veloso, um beijinho, um olá, um copo para a mão trazido por Adão que num salto rouba dois aperitivos com uma azeitona cada e em menos de nada bebe o seu sem distinguir o tipo de álcool, come a azeitona e cospe o caroço para a mão procurando logo onde o deixar, voltou para a bandeja do empregado.

Depois das apresentações e dos sorrisos automatizados de boas vindas indiferentes Adão apresenta Miguel já no interior ao dono no restaurante, com quem não tem grande confiança, "Este é um grande amigo meu" e o dono do restaurante cumprimenta-os activamente pergunta se estão a gostar de tudo e volta freneticamente ao trabalho de gerir os empregados com um chicote de cinismo empreendedor. Miguel e Adão formam instintivamente o seu mini baluarte perto da saída das bandejas de canapés e cálices tintos. Retomam a conversa no ponto onde ficou, mulheres giras, agora ilustrada pela alta densidade de bons espécimes da alta sociedade que enchem o espaço e a rua. Saindo-se da hora dos mosquitos acelera-se pelo período do jantar, já toda a gente navega em copos de gin e whiskey, um grupo de betos rurais pede aguardente e imitam uma pega de caras com um dos menos peludos do grupo, há alguma fricção entre machos invisível a Miguel mas que Adão aproveita como pretexto para se agruparem a duas miúdas que parecem do seu campeonato.

- Não tarda nada temos tourada aqui dentro.
- Estás a convidar-nos para sair daqui? Bora!
- Ahahah - Adão surpreende-se com o sucesso rápido, excitadíssimo ri mais alto que todos e começa o festival de chistes geniais que não tento reproduzir porque não tenho metade da sua piada. Todos lhe admiram o brilho repentino. Miguel não está convencido com elas, são velhas, diz-lhe, para cima de 40 anos. Adão bebe álcool com a certeza de um profissional mas o mundo passa a parecer-lhe demasiado perfeito, excepto quando lhe parece uma merda de futuro negro. A miúda em quem Adão firmou os ferros é a mais gira, a mais afoita, mas também a mais velha. Tem 45 anos, a miúda, e uma filha adolescente que o faria ponderar a pedofilia, tem botas de pele de cobra, aceita engates dos anos 80, enfim, no meio do paraíso terreno em que se transformou este dia e esta noite, esta mulher é como um São Pedro com saudades dos prazeres da carne. Miguel afasta-se e leva com ele o par que lhe calhou, por cavalheirismo apenas, e ela percebe-o. Adão desaparece à porta com a mulher que parece sua tia.

O local começa a fechar as portas e transforma-se num bar de engate em estância balnear, Miguel subtilmente ostracizado à chegada, acaba por fazer amizade com a dita mulher amiga e com uma das irmãs Saldanha, óptima, moreno-loira de olhos verdes-azuis-acastanhados, e que se mostra um bilhete convidativo para qualquer lado que não para casa sozinho. Não consegue desfazer-se da velha de 37 anos.

- 37 anos, só? Pensei que fosses mais velha.
- Que idiota - diz a companheira de noite cuja amizade se tornou elástica, relatado apenas neste tom dir-se-ia que ela lhe ia despejar um copo na cara, mas estão os dois em esticada brincadeira de bêbados de surpreendente familiaridade, Inês Saldanha de 29 anos ri-se entusiasmada pelo abuso Miguelista, quase excitada por reconhecer ali a matéria arrogante de quem faz amigos entre os rústicos, mas não, nem Miguel teve essa intenção, nem iam ficar sós, que uma velha de 37 anos tem o seu orgulho de empata fodas. Eventualmente um Pereira Coutinho Ricciardi de Castro Laboreiro mete conversa com Inês e leva-a ao Lux.
- Querem vir? - diz ainda Inês enquanto o rapaz tira a chave do Jaguar que tresanda a Banco Mau.
- Obrigado, mas combinei com o porteiro nunca mais aparecer à frente dele na vida - apenas a mulher de 37 anos se ri, Inês esboça um sorriso confundido e o rapaz loiro de barba forte ignora-o profundamente.

Adão não sabe onde está, sai da porta de um prédio velho e acende um cigarro ao contrário. Depois acende outro cigarro ao contrário. Por fim acende um cigarro do lado certo, olha em redor e parece-lhe distinguir a Rua da Escola Politécnica à esquerda, mas era a Conde Redondo. Ainda recente flutuam imagens de luzes baixas, lençóis de seda, lábios borrados, o toque felpudo da base exagerada e de um rabo quase bonito mas flácido, e a preocupação constante por não fazer barulho para não acordar alguém que dormia no quarto ao lado. Uma erecção pouco consistente por consequência e tudo e ainda do vinho, que a dona da casa se esforçou por reafirmar num broche desastrado que envolvia incisivos. "Táxi!" não parou. Desce a rua a pé, passa pelas mulheres barbudas, olha duas vezes para um transexual bonito e luta com a sua consciência. Mais abaixo pedem-lhe lume e ele reage aos berros. Noutra rua a subir passa um carro cheio de gente e música e gritam-lhe algo imperceptível, ele já não tem forças nem criatividade para criar a má índole de quem lhe gritou obscenidades, resmunga entredentes contra os filhos da puta em geral.

São 4 e tal, o álcool não passa, o que se passou há 5 minutos parece-lhe desconexo com o que se passa agora, tudo são memórias soltas, as pedras da calçada ainda ali eram oblíquas, fachada, passeio, estrada, jardim, as imagens rodam e não se colam no mesmo plano, não é fácil entender o caminho, o som está em mono, o ruído de fundo está marado, está cansado, está tão cansado. Deita-se num banco à sombra de um abutre num candeeiro.

- Barnaaardo...
- Tou, então meu, o que é que se passa?
- Estás bonzinho?
- Puto, vai-te foder, estás-me a ligar a esta hora? Passa-se alguma coisa que mereça que me acordes a esta hora?
- Estou a ligar ao meu amigo. Não posso? Gosto tanto de ti puto.
- Olha, vou desligar.
- Espera aí, estou na merda.
- Então Adão? O que se passa contigo caralho?
- No passa nada, qué no passa nada, eheheh...
- Adão, foda-se, porque é que me ligaste? Estás na merda porquê?
- Porque eu sou uma merda, o teu amigo é uma merda de um gajo. Fiz merda. Outra vez, fiz merda outra vez. Enrolei-me com uma miúda, muita gira, mas mais velha. Estou deprimido. Linda, morena de olhos verdes, epá, chuac! Daqui! Ias-te passar. Uma beca flácida. Estou todo fodido, estou aqui num jardim, acho que é o Jardim Constantino (não era, obviamente, já estava no Príncipe Real) bem giro. Adoro a Eva, a Eva é a mulher da minha vida. Ela é fodida, trata-me abaixo de cão, mesmo tipo, abaixo de cão. Sabes como é um cão? É abaixo disso. Que puta!
- Ouve, vai dormir. Amanhã falamos melhor, pode ser? A Madalena já se está a passar. Já tive que me levantar da cama para falar contigo. Prometes-me que te metes num táxi para casa? Estou?

Adão deixa cair o telefone, salta a bateria e Bernardo aproveita para tirar o som ao seu, a custo conforta-se fingidamente no facto de Adão ser protegido por Baco, desde sempre, o sono e a paciência não o deixam preocupar-se mais.

Fica sentado no banco de jardim sem segurar bem o pescoço a olhar para o ecrã aceso do telemóvel. O momento chave da depressão alcoólica, que anda sempre a rondar o suicídio social. Adão é uma pessoa igual a toda a gente. Queria ser melhor do que é na prática. Choca-se com as suas próprias atitudes, corrige-se por períodos curtos e volta a cair nas suas próprias armadilhas. Casa, escritório, Eva, putas, vinho maduro, mãe, grandes amigos com vida própria. Sem os outros é o quê? Criou o quê? Onde está aquilo que perseguiu? Bom, perseguiu o quê? Quem lhe ensinou o que havia de ler, de ver e de ouvir? Quem fez dele aquilo que ele é? Na verdade foi criado por uma amálgama de coincidências educativas, como toda a gente. Vendo bem resultou melhor que muitos, vestiu a camisola do empreendedorismo sem escrúpulos e isso deu-lhe uma vida mais ou menos estável. Isso é que importa, para tem horror à sua própria morte e apenas gere o presente: a sobrevivência.

O telefonema seguinte vai para a Sara Albuquerque. Uma viagem inconcebível de 15 minutos pelo egoísmo insocial de Adão, pelo seu profundo Id filtrado a peneira larga que fixou uma obsessão apaixonada na ex-namorada de um ex-grande amigo. A Sara é uma miúda amplamente pretendida, e a compleição física extraordinária é apenas um bónus inacreditável, é alguém que se pretende logo à partida para ter filhos e criar raízes em qualquer lugar que ela decida, caso se consiga sobreviver ao seu temível sarcasmo de mulher feliz e de bem com os outros. Até terminar a relação com aquele cujo nome não será mais lembrado apenas tinha socializado com Adão por intermédio do namorado, depois disso foi alvo constante das suas emboscadas patéticas forjadas nos meandros das partilhas públicas do Facebook e no átrio do Holmes Place de Alvalade, para onde Adão tinha que ir de transportes públicos baldando-se do escritório antes do fim do dia. O seu amigo naturalmente deixou de o ser quando se soube disto. É impossível adivinhar o que é dito por um bêbado irrazoável a uma rapariga que mal conhece, tão experiente quanto assustada às 5 da manhã de um dia de semana, mas o telefonema durou 14 minutos e 23 segundos, e não há quem assegure que a Sara não vive já com outro namorado, que não é outro tipo do Direito, ou um porteiro de discoteca, ou um dealer da Bela Vista. Não há quem assegure que foi com ela que ele falou.

Acorda num táxi, com um homem a puxá-lo para fora do carro "Está entregue chefe", não se lembra de pagar a corrida, porque o taxista encostou o carro quando ele adormeceu e tomou a iniciativa de lhe vasculhar a carteira. Reconhece a porta de casa a 20 metros. Novamente afluem memórias recentes de um porteiro obtuso, de uma fila numa casa de banho de mulheres, "Que idiota!" alguém desse grupo lhe dizia, imagens de notas e mais notas a sair do multibanco e da carteira, imagens suas a dançar sozinho numa pequena clareira de gente bêbada, talvez menos que ele. Cruza-se até à porta de casa com pessoas do seu quotidiano sem as ver, deita-se na cama de Eva que tem as costas bronzeadas e cuecas brancas, tenta encostar o carro à praça, mas ela levanta-se de forma automática num salto e vagueia pela casa atordoada, volta ao quarto e Adão adormeceu, vê-lhe mensagens e chamadas no telefone sem grande emoção, vai beber água, toma banho, lava bem a cara, lava bem os dentes branquíssimos, bem demais, vai à net ver casas para alugar sem grande intenção de o fazer.

- Estou?
- Bom dia.
- Olá. Madrugaste - bocejo - Ele já chegou?
- Sim. Chegou há 15 minutos. Caiu na cama.
- Estás bem?
- ...
- Eva?
- Não sei. Quero estar contigo.
- Queres passar aqui? Já tomaste o pequeno almoço?
- Não é de comida que preciso. Passo aí.

Na rua o sol das 8 já aquece demasiado, Eva sentia um frio nocturno entranhado na pele desde ontem ou desde o Inverno e o calor sabe-lhe a protecção paternal, protecção que Adão lhe dava ontem e há milhares de anos, e que crescentemente se inverteu até se tornar no peso da responsabilidade de cuidar de um homem preso na adolescência que destrói tudo em que toca, e o amor se transformar em dependência do ódio. Hoje será outro dia, eventualmente.