entredentes interlude

esta bolacha que eu amo, incrusta de chocolate de leite,
ficou-me entre os dentes incrusta, até quando te beijei-te.

limpa-me com a língua os dentes, amorosamente te incumbo,
tão zelosamente o fizeste, por fim me arrancaste o chumbo.

"perdoa zé tanto zelo, zó estava zelar p'lo teu bem",
por isso casei contigo, disposto ao fugaz fustigo,
quisesse sozinho fazê-lo, teria que chamar minha mãe.

a georgete que há em mim

este é o amanhecer de um homem a par com uma crise de semi-meia idade, um homem específico, chamemos-lhe joão a fim de preservar o seu anonimato, saído de uma paixão não consumada pouco importante, a primeira desde que vive sozinho e tem uma cama que não de solteiro como a do seu quarto de infância, de onde saiu tarde, como quase todos nós.

levantou-se com mais sono do que tinha quando adormeceu, ainda a presença de um sonho desconfortavelmente solitário, a cara inchada, um sabor a chão do elevador na boca, dificultam-lhe a chegada à casa de banho onde consegue a custo mijar acertando a espaços na sanita. entra para o duche, lava a cabeça com champô anti-caspa e usa o mesmo champô para lavar o resto do corpo começando pelos sovacos. repara que com a espuma da cabeça vêm alguns cabelos soltos, os mesmos que ontem. sai do duche, pesa-se e tem o mesmo peso que ontem, lava os dentes e pensa que ainda não marcou a tal consulta do dentista para arranjar o tal dente cariado que lhe dói sempre depois das refeições. olha-se ao espelho e repara mais nas rugas hoje e no mau aspecto com que fica quando não faz a barba. por vezes a sensação é exactamente a contrária, hoje curiosamente não. olha-se nos olhos e diz entredentes "és uma merda.. não vales nada.. és feliz? não. porque é que te levantas sequer da cama? ninguém sente a tua falta se não saíres de casa hoje". depois sorri para si próprio e diz "estava a brincar!" desfaz o sorriso num voltar costas ao espelho e veste-se.

no patamar encontra a vizinha "bom dia vizinho!" "bom dia georgete!" a alegria dela a esta hora dá-lhe náuseas mas é simpática, claramente também se diminui a si própria ao espelho pela manhã, ou talvez não. talvez pelo contrário, se motive ilusoriamente acerca desta sua beleza cubista. "estás gira georgete, cortaste o cabelo?" "cortei! que raro, um homem a notar uma coisa dessas, só podias ser tu, hihi". a georgete está sempre a insinuar-se ao joão, mas pensa ele que ela provavelmente se insinua a qualquer mamífero macho. pena que o joão ache que deus lhe reservou uma vénus de milo com braços, uma apresentadora portuguesa com cérebro, e não consiga ver para além da gabardine de banalidade de que a georgete reveste o seu quotidiano para esconder uma alma carente de amor e volúpia. descem juntos despedem-se à porta do prédio, ela dá-lhe a mão e um sorriso numa ternura inundante que vai deixar o joão a pensar nela o resto do dia, ou até ao metro.

de facto, que raio, nunca pensou assim na georgete, a miúda passa as noites e fins de semana sozinha em casa, como que para aproveitar a promoção telefónica da zon, ora aparecem umas amigas, ora aparece a georgete lá em casa dele a perguntar se lhe consegue abrir um ou outro frasco. aparentemente está sempre feliz e sorridente, será que tem um corpo bonito? sempre a pensar nas mulheres como objectos este joão. refreia esse pensamento, repreende-se pela quantidade de vezes que em certas situações se decidiu pela mais gira de entre duas amigas e levou uma tampa. foram todas. nunca deu valor às pessoas banais. "gosto de ti como amigo" ouviu tantas vezes que passou a aplicá-lo acefalamente a quem se aproximava. a georgete, a georgete foi crescendo na sua cabeça de tal forma que à porta do metro já só pensava em estratégias para ir lá bater à porta quando chegasse às 19 a casa. a georgete chega a casa às 18 e agora de inverno veste logo o pijama dos ursinhos com que vai lá tocar à porta quando precisa de abrir a compota. de repente a textura leve do pijama dos ursinhos estava capaz de lhe dar uma erecção. perigoso, quando se entra no metro em hora de ponta.

mas merda! mais uma vez, o cartaz da intimissimi do outro lado da linha do metro deixava-o deprimido com a possibilidade de vir a ter uma namorada que não modelo de lingerie e ter que apanhar com ela o metro em frente a este mesmo cartaz, que se multiplica pela cidade. esta deusa! estes olhos! q'olhões! ter que a enfrentar todos os dias com uma namorada menos que perfeita era admitir-lhe uma derrota humilhante, uma vida falhada, depois de tantos anos a flirtar com modelos de cartazes, de múpis, de La Redoutes. não podia ser. este pensamento quero eu dizer. repreendeu-se mais uma vez pela superficialidade que parecia estar a minar a sua decisão há momentos inabalável. as formas de apreensão desta realidade mudavam ao ritmo das janelas do metro que chegava, como se tivesse que decidir-se antes de se afastar do cartaz, porque naturalmente não podia tomar uma decisão que não ponderasse estas situações e a melhor forma era tomá-la em conjunto com elas, em confronto directo. sozinho é fácil.

que merda mais superficial. tenho que fazer uma correcção.

devia começar por dizer que o joão tem mais problemas que a banal luta da solidão de quem acha que ninguém é suficientemente bom para ele. o joão tem um trabalho que se banalizou. pouco gratificante, nada evoluiu nos últimos 10 anos. fá-lo sem pensar, obediente e puta. mas o trabalho enfadonho de quem não tem vida nas veias para o abandonar também não é motivo de depressão, ou, a ser, é pouco digno da atenção dos outros. o problema do joão vem detrás e acompanha-o. vem de dentro. do facilitismo com que entrou no mundo real, do desprezo das oportunidades que lhe apresentaram em prol do conforto físico, a forma como perdeu os amigos desinteressados desta decadência de interesses. o joão tem um olho na merda, o outro no infinito, interessam-no banalidades externas que não controla, foge ao âmago da questão, da sua questão. o confronto com a sua própria identidade. "não serei eu um gajo suportável para mim próprio? se me conhecesse na rua, seria meu próprio amigo? ou seria daqueles gajos que odeio de morte?" (convém lembrar que o joão odeia todos os gajos de morte). o problema do joão é não saber o que ser, do que gostar, para onde ir, o que fazer, o problema é tudo isto e nada disto, porque nada disto lhe parece a causa de tudo, e tudo junto parece mais um sintoma. a causa é profunda e só se resolve com outra vida. o analgésico pode passar pela georgete. pode? pode. pena o nome horroroso.

entra no metro. embarca. tomou a decisão de não pensar. agir. agir sem pensar só pode resultar mal para terceiros. esses têm os seus próprios problemas.

de resto, numa outra vida poderá começar o dia da seguinte forma. levanta-se ensonado, ficar a dormir mais um bocado seria bom. sente a cara inchada como um saco de batatas, lembra-se do ridículo das caras inchadas do metro em hora de ponta. hálito a água de lavar tremoços. entra no duche lava o cabelo com champô anti-caspa, lava também o resto do corpo e repara que não está a ficar mais novo. sai do duche, pesa-se e não engordou. lava os dentes e lembra-se que tem que marcar a consulta com o dentista. sorri ao espelho à georgete, atrás de si, que acaba de entrar na casa de banho, de cara inchada, e a sorrir.

do sol ao rato

abro os olhos, o mundo está de lado na minha sala, a minha mão desmaiada de palma para cima no fim do meu braço estendido no tapete foca a minha atenção e desfoca o resto do mundo como numa fotografia pretensiosa de profundidade de campo reduzida. pela janela entra a luz directa do sol, acentua os contrastes, reduz-me o tempo de exposição. não é o sol da manhã senão podia ser a hora da minha morte.

não me levanto, lembro-me de outras fotografias exactamente iguais, sem as localizar imediatamente no tempo. "já estive aqui" e o esforço de me lembrar leva-me a destruir a barreira da memória, e faz-me comichão no cérebro. numa vida passada, contigo, não estavas em casa, mas eu estava exactamente nesta posição sem esperar por ti, estava simplesmente deitado no tapete da nossa sala a sentir o sol na cara, sem pensar no que tinha para fazer, se é que tinha. lembro-me agora. estava a pensar que já tinha estado exactamente naquela posição anos antes, sozinho, em casa da minha mãe. ela não estava. isso pareceu-me há séculos. noutra vida.

acordei então de um sonho nostálgico e os diques de defesa do meu cérebro ainda não se tinham levantado, todas as memórias se misturavam nos minutos seguintes ao acordar. porque é que eu estava ali agora e não estava em casa da minha mãe? quando é que passei a chamar casa da minha mãe a essa toca onde passei toda a minha vida até aí e ninguém me punha em causa? o que é que eu estava a fazer ali tão longe de casa? desprotegido? porque é que arrisquei tanto? porque é que te disse que sim, vamos viver juntos? como é que acreditei que podias ser minha mãe e mãe dos meus filhos e minha amiga e minha foda? como é que acreditei que eu seria um bom companheiro de alguém?

acordo agora de outro sonho, no qual não tinha amigos e não importava. estava simplesmente no mundo como toda a gente. era um indivíduo anarca numa sociedade de desconhecidos, que até funcionava, e onde se passavam coisas e mais coisas, de sequência kafkiana sem que ninguém as estranhasse, mesmo estranhando-as. acordo e vejo esta fotografia tão familiar que me faz duvidar que a minha vida não seja cíclica e que portanto não vai a lado nenhum.

apaguei-te da memória, e aos nossos filhos, perdi-vos, não sei onde vos deixei. mas vejo nesta nova fotografia sinais de uma outra família, a bola do meu filho ali debaixo do sofá, o soutien da minha mulher caído no tapete, o osso de plástico do meu cão, mordido e cheio de pêlos com uma definição tão clara que parece mesmo que aquele cão tem uma presença incontornável na minha vida, que alguma vez brinquei com ele com vontade e que fomos felizes os dois. nestes instantes em que as represas da minha memória são repostas e vão impedindo inundações maiores começo a reentrar em todas estas novas realidades, tão presentes que não sei como há segundos as abominava, e vou abraçando-as lentamente. coisa que não consegui fazer quando vos deixei.

não sei quantos anos tenho. cada vez que entro completo numa memória descubro mais uma década da qual me esqueci. também não sei quantas mais vezes vou ver esta fotografia que me atravessa vidas inteiras e se cola inoportunamente aos momentos simples. o sol adivinho que terá sempre esta intensidade que a sobre-expõe.