Allegro Barbaro

Sinto algum desconforto ainda dentro do sonho por causa de uma erecção sem espaço para crescer contra o colchão, sem abrir os olhos viro-me para cima, aliviado e rapidamente contrariado por ouvir a porta do quarto do lado a abrir com esforço, passos rápidos de animal furtivo, abre-se a porta do nosso quarto e salta-me uma miúda de 3 anos para cima da cama como quem salta a vedação enorme de um espaço idílico que se assalta por prazer. Encolho a erecção dentro do corpo, a Bárbara abraça-se a mim a cheirar a champô, os caracóis loiros entram-me no meu nariz, preciso de coçar o nariz, ela abraça-me com demasiada força.

- Bárbara, estás a magoar o pai
- Quero cereais
- Sim, a mãe já vai dar, eu vou tomar banho.

A mãe dorme virada para o outro lado e finge que ainda não acordou.

- Ainda não acordei Bárbara, espera um bocadinho
- Mãe, quero cereais
- Hoje tens mesmo que te despachar com as comidas que eu tenho uma reunião
- A que horas?
- Às 9.00
- Podias ter-te levantado mais cedo!
- Tens razão meu amor, mas não levantei.

A mãe continua a queixar-se com observações que já não oiço, levanto-me, tiro a roupa de costas para a miúda, nem sei bem porquê, para não deixar imagens mal gravadas de infância cujos efeitos me são desconhecidos, não encontrei literatura acerca de pais que se despem com erecções à frente de filhas de 3 anos, vou para o banho e mijo para o ralo até a pila baixar lentamente como uma ponte abaixadiça.

- Estão prontos ou quê?! Henrique, as tuas botas? vou sair e vais ficar aqui em casa
- Não! estou a ir calçar! posso levar um filme para a escola?
- Não
- Porquê?
- Não sei, mas não podes
- Mas eu quero!
- Mas não podes
- Mas eu queria
- Henrique, vamos embora, Bárbara, bora! o que é que estás a fazer? o que é isso que tens na boca?
- É pasta de dentes, ela não bochechou
- Bárbara, vai bochechar
- Não!
- Vai bochechar!
- Não quero!
- Bárbara, vão cair-te os dentes todos, despacha-te
- Não!
- Então olha, vais assim a espumar da boca
- Não vou nada!
- Mau! toca a andar, veste o casaco
- Não visto!
- Zé, a Carolina está a acordar, tenho que ir dar leite.

Visto-lhe o casaco enquanto me manda pontapés, o Henrique choraminga pelo filme, epá, vai lá buscar a merda do filme, obviamente ele traz dois.

- Só um filme
- Só estes dois
- Não, só um, senão não levas nenhum
- Então este do Pirata Capitão e o Gato das Botas
- Só um, já estou a perder a paciência
- Não é isso! o gato das botas é o boneco, o filme do Pirata Capitão e o boneco do Gato das Botas
- Traz essa merda, despacha-te, eu vou descendo com a mana.

Pego no saco do ballet, desço as escadas, volto a casa porque era um saco do lixo, pego no saco do ballet, cá em baixo o Henrique chega com dois filmes na mão.

- Afinal queria este dos Croods também, deixei o boneco.

Nas escadas da creche encontra-me a mãe baby blogger, giraça, mãe de 4 ou 5, nunca me ligou um caralho, mas soube-se na escola que tivemos gémeos e não sei, deve ter uma tara por homens altamente férteis, se há coisa em que a experiência me versou foi na capacidade de reconhecer tesão por mim, coitada, esta despudorou-se toda, consigo cheirá-la, tesão pura e desaperfumada de uma mãe betinha rebelde.

- Olá - sorriso aberto
- Bom dia - faço o sorriso que consigo, manobro todas as energias para esta prioridade, não a mãe de 4 física, propriamente dita, mas a avaliação desta mãe de 4, valerá a pena o investimento futuro, que não hoje em stress de reunião de obra. A Bárbara abraça-se a mim quando tento sair da sala, como todos os dias.
- Vá, vai brincar, dá-me um beijinho
- Não..
- Vá lá querida, o pai tem que ir.
- Não quero...
- Tem que ser Barbarini.
A Andreia vem em meu auxílio como todos os dias - Anda Bárbara, vem ao meu colo, vamos ali ver a rua - Ela vai a custo como todos os dias, sem chorar, 10 segundos depois vejo-a através da porta de vidro sala a brincar com o puto Miguel ou a dar-lhe com um tacho na cabeça. O Henrique espera ao meu lado.
- Bora miúdo?
- Sim, está ali a Francisca
- Qual é?
- (suspira condescendente) é aquela ali de com totós
- Vais lá dizer-lhe bom dia?
- Não, nós não dizemos bom dia pai
- Se calhar se tu lhe disseres ela não está à espera e começam a conversar
- Está bem, mas eu não quero.
- Ok, então dá um beijinho ao pai
- Adeus pai.

Estou já à porta da escola para assinar o livro de registos quando ele me volta a aparecer à perna
- Que foi filho?
- Esqueci-me de te dar um abraço.
Um abraço com todas as forças que ele encontrou, sofrido, de quem leu Camus, de quem a única certeza que tem na vida é a de que precisa de mim, fisica e emocionalmente. Volta para dentro e eu fico um bocado deprimido por deixá-lo ali e não o levar comigo o dia todo a ver o mundo.

- Então, não tinhas reunião às 9.00?
- Tenho, mas já liguei a dizer que vou chegar atrasado, deram-me esta pasta gigante na escola com os trabalhos do ano passado, que aparentemente já lá estava há duas semanas à espera, a tua mãe tem cagado nela quando vai buscar os miúdos, e agora ia para o lixo - Pouso a pasta no primeiro móvel que encontro, de onde caem dezenas de elefantes pequenos recortados pelo Henrique.
- Por falar nisso, ela não pode ir hoje.
- Ok, eu vou.
- Queres dar uma queca?
- Hoje é que te lembras? Estou atrasadíssimo! - ela consegue cheirar a mãe de 4 através da minha postura corporal. Aproveito para tomar o pequeno almoço, tento aguentar-me quanto à queca, consigo porque ela perdeu o interesse assim que percebeu que eu ia ficar mais um bocado.

Na autoestrada acordo a 140 na descida do Duarte Pachedo quando vejo as luzes vermelhas dos carros parados no viaduto e me lembro que vou a conduzir um pequeno autocarro cheio de cadeiras de crianças. No pára-arranca sinto-me várias vezes observado pelos carros do lado, resisto sempre, mas quando olho nunca está ninguém a olhar para mim. Oiço o jingle do fórum TSF para onde políticos não remunerados em início de carreira telefonam travestidos de velhinhas e reformados, mudo para a Radar. Liga-me o empreiteiro, o electricista está quase a ir-se embora, mas queria mesmo conseguir falar comigo hoje, se fosse possível. Calma, o pai está a chegar. Em Campo de Ourique dou 3 voltas ao quarteirão e estaciono em cima de uma tia magríssima que ia ao café.

- Bom dia arquitecto - cumprimenta-me o Francisco à entrada do prédio - então, acordou tarde? Eheh, estava a brincar. Está toda a gente lá em cima à sua espera, quer dizer, estão todos a trabalhar, todos a trabalhar, há muita coisa para fazer. Isto está tudo sujo aqui na entrada, passe passe arquitecto, já disse ao Márcio para limpar esta merda mas os gajos estão sempre a sujar isto tudo outra vez.
- Pois, os vizinhos queixam-se, já sabe
- Pois é, mas o que quer, nós dizemos mas esta malta não têm cuidado nenhum, isto é pessoal das barracas.

Chego à obra e cumprimento alegremente todos os serventes, como sugerem as frases profundas do facebook de respeito pelo inferior hierárquico escritas por empregados de mesa brasileiros, "tem a mão suja? e então? também eu, que sou arquitecto! 'cá um passou-bem! mas de facto tem a mão um bocado suja", em alguns meios de recrutamento isto resulta que em menos de nada estou a levar bocas de um pedreiro como se estivéssemos no meu bairro de infância e ele fosse um dos bullys mais velhos. Aí tenho que puxar dos galões e chutá-lo para o seu caixote e mando por água abaixo 3 meses de investimento na classe trolha da obra que nem eu percebi para que serviu.

O electricista parece feliz por pôr-me a vista em cima.
- Então arquitecto?
- Tá aqui!!!
- Ahahah
- Ahahah
- Eheheh - Toda a gente ri apenas por entender que se quebrou ali uma tensão que durava até eu ter aparecido, sem entender propriamente as razões por detrás da alegre chilrearia do electricista.
- Estão aqui, schuko, RJ45, os comutadores do corredor, o inversor, os interruptores com sinalizaçao.
- São para quê esses?
- Para as ventaxs e um para a luz da escada, acende para saber que deixou ligado.
- Isso é tudo EFAPEL? É uma granda merda esse material.
- Eu sei, é por isso que eu só ponho disto, para o irritar.
- Eheheh, mas agora a sério, isso é uma granda merda.
- Ok, eu dou-lhe o telefone deles e você queixa-se directamente. E as lâmpadas para as sancas, sempre arranjou?
- Arranjei leds.

Oh cum filha da puta mais os leds, até os electricistas, os leds não iluminam um caralho "iluminam sim senhora, há leds e leds, isto hoje em dia há bons leds", há nada! há leds que iluminam metade, que custam o triplo do preço e consomem o mesmo, são uma granda merda, "ahah, isso é o que você conhece, eu coloco leds há muitos anos, a tecnologia já não é o que era dantes pá" oiça, eu trabalho há 15 anos com engenheiros electrotécnicos, não ando cá no Leroy Merlin a olhar para as prateleiras, fazem-me o cálculo luminotécnico para qualquer projecto, tenho menos 10 anos que você e você está a tentar a puxar a carta da tecnologia? "mas foi a cliente que pediu, ela esteve cá e disse mesmo que só queria leds", então a cliente que vá comprar leds para enfeitar a peidola e pô-la à janela no Natal, os leds não vão dar luz suficiente para as sancas das IS. Quero lâmpadas T5 de 24W nas sancas pequenas e de 49W na sanca grande. A próxima vez que tiver que falar deste assunto é para me rir na sua cara quando ela disser que você a convenceu a pôr a merda dos leds e ela ficou sem luz na casa de banho para pintar os lábios de roxo.
O Francisco aproveitou para ser sabujo - Eu já te tinha dito oh Carlos! não ouves um caralho, eu disse-te que o arquitecto de certeza que tinha feito estudos mirotécticos para ter escolhido essas lâmpadas.

Estou mais duas horas a falar com o electricista, com o canalizador, essa classe humorista, com o empreiteiro, com o servente, com o homem dos gelados, com os caralhos da NOS que depois de impingir uma vistoria à cliente por 100 euros não foram capazes de avisar que precisavam de 4 tomadas extra no armário técnico, para fazer fusão a frio, e meteram o electricista outra vez contra mim. Ao meio dia começaram todos a dispersar para almoçar.
- O arquitecto não quer vir connosco? Bora lá, mas não vamos ao deles, vamos ali a um porreirinho de um casal de Paredes de Coura, tem vinho verde, não é o arquitecto que é de lá de cima?
- Não, é a Clara, fica para a próxima, já tenho um almoço. Obrigado na mesma Francisco.

Não tinha, assim que saio ligo para o Xu que acabou de ser despedido do jornal, com honras de última página e com uma tonelada de prémios em ouro e um currículum em seda, já foi entretanto convidado para várias publicações, além das de Nova Iorque que levaram o seu próprio gestor de conta a denunciá-lo à judiciária pelas avultadas transferências mensais. Foi também convidado para dar aulas no Tibete e em Lanhelas, onde foi hoje a uma entrevista, não pode vir, mas combinamos já para a semana que vem, com os outros dois antigos combatentes.
- Falas com eles?
- Sü, sü, combinadíssimo, falo com eles no fim de semana
- Ok, vemo-nos daqui a dois anos está visto, tenho aqui uma chamada, beijinhos.

- Estou?
- Olá!
- Quem fala?!
- Hm.. É da Autoridade Tributária, temos um problema na sua declaração de IRS do ano passado.
- Hmm?!
- É a Dalila.
- Dalila?! Ahah, como é que arranjaste o meu número? Por esta é que eu não esperava.
- Nem eu, estava a pegar no telefone para te ligar e a pensar na parvoíce que estava a fazer. Queres almoçar?
- Quero, claro. Onde estás? Eu estou em Campo de Ourique.
- Combinamos no Príncipe Real, trabalho aqui perto.

Que stress, vou mesmo almoçar com a miúda, o que é que eu estou a fazer?! Ainda por cima é pouco vistosa, ao Príncipe Real, que idiota, alguém vai ver, vai comentar, que se foda, é só um almoço, não é bem só um almoço, claro que é, para ela é de certeza só um almoço, ok, para mim também.

Como tenho tempo, entro no alfarrabista que tinha visto no primeiro dia de obra e que marquei na memória para me arrepender de nunca ter entrado. Lá dentro, à porta está Lisboa de Bráunio. A cores. Pergunto quanto vale, a senhora avalia-me e diz-me que é muito raro...
- O original é, isto é uma cópia banalíssima. 5 euros?
- Ahah, pelo menos 15 euros! Foi quanto me custou..
- Então esqueça, foi enganada, isto compra-se na CML em melhor estado por 10 euros. Obrigado na mesma.
- 8 euros, leve lá isso, vá.

Sigo para o rendez-vouz com a gravura enrolada a rebolar no banco do lado, dou 20 voltas aos quarteirões e estaciono o carro num lugar para residentes deficientes, depois tiro o carro e dou mais 10 voltas e encontro um lugar perfeito na Rua do Século, mesmo no topo, nem vou ter que suar a subir a rua. Cheiro a gola, tiro chaves e fita métrica dos bolsos, guardo na consola central, uma pastilha para o hálito, é só um almoço meu, mas não vale a pena ir a cheirar a naufrago.

- Olá! Desculpa, estavas à espera há muito tempo?
- Acabei de chegar, mas devias ter chegado antes da miúda. Já estás a marcar pontos.
- Ah estou? boa então. Onde queres ir?
- Hambúrgueres? Há aqui mil casas de hambúrgueres, apetece-me comer com as mãos à tua frente para quebrar o gelo, senão vai ser demasiado formal, durante um tempo indeterminado.
- Óptimo. Qual?
- Qualquer uma, são todas iguais.

A Dalila é demasiado bonita para isto, cara de miúdinha, maria rapaz, parece que não tem consciência da beleza que tem, ando com ela uns 300 metros na rua e conto 15 homens a comportar-se como macacos, um deles não se coíbe de lhe pedir lume em andamento como um puto da escola mesmo vendo-a acompanhada e de olhos fixos em mim a rir-se entusiasmada e a fazer-me uma tonelada de perguntas, dá-lhe lume mas não olha para a cara dele, só quando percebe que o seu olhar matador não terá resposta é que ele olha para mim, é a segunda vez que me tentam avaliar hoje. No restaurante o empregado já a conhece, ela trata-o com uma piadola, mas admite-me que não se lembra de o ter visto mais gordo.

- Confundem-me com a Emma Stone e acham que já falaram comigo antes, e eu como tenho uma memória de peixe falo com toda a gente para não acharem que sou uma cabra arrogante.
- História da minha vida, a mim também me confundem com a Emma Stone. Quem é a Emma Stone?
- És muito mais giro que a Emma Stone. - Sorri envergonhada, olha-me nos olhos por um segundo à procura da minha reacção, que é apenas um sorriso e um abano de cabeça desaprovador, e envergonha-se ainda mais enquanto se ri, olha em volta pela primeira vez, vejo-a de lado. Fico desarmado, a conversa está demasiado fácil mas com uma miúda assim nunca nada é demasiado fácil, já conheço isto, posso perdê-la em minutos e nem sei se a quero. O que é que ela quer de mim?

- Uma limonada.
- E eu quero uma imperial.
- Vais beber imperial? Então também quero uma em vez da limonada, se faz favor.
- Então, conta-me lá, onde arranjaste o meu telefone?
- Estamos no século XXI, homem. Não sei, achei que merecíamos um almoço, talvez me falte um amigo, pareces um tipo porreiro.
- Mas não sou, sou um calculista de merda, e burro, sou tão burro que não consegui rejeitar o teu convite.
- Pois és, pai de filhos (quantos?) e aqui a almoçar com uma mulher casada e momentaneamente perdidinha das ideias. Tsc tsc. Ahah, ouve, estou a brincar! Está descansado, não sou nenhuma maluquinha e não deixo nenhum de nós deitar tudo a perder.
- Só vim porque és mãe de filhos, estás dentro do ecossistema, somos uma irmandade um bocado amorfa. Não tenho medo nenhum de ti. Mas se é um amigo que queres aviso-te já que não vou estar à altura, és demasiado gira. Com mais tempo daria para sermos só amigos, até eu fazer a merda do costume.
- Eu quero exactamente o mesmo que tu, vamos evitar falar nisso e fazer o jogo dos adultos responsáveis o máximo de tempo que conseguirmos. O que fazes? Além de jogares futebol com o meu marido.
- Além de ser pai de 4 crianças faço pouco, vivo de rendimentos, chulo o estado, sou do Benfica.
- Pára, eu disse para parares de falar de coisas que me excitem!

Passo o resto da tarde numa excitação febril, a minha tarde das 15 às 17, construiu-se uma coisa clara, sem controlo, correu demasiado bem, estabeleceu-se a linha vermelha, estabeleceu-se que a linha vermelha desaparece com uma escorregadela numa rampa de acessibilidades. Mas não quero que desapareça agora, é só jogo, é só um joguinho infantil, já o fiz tantas vezes. Estou só a dançar a nostalgia daquilo que não volto a ser, daquilo que não volto a ter. Quando faço merda foi um sonho, não aconteceu. Não me deixo curtir a bebedeira, não me deixo apaixonar, o meu amor pela Clara flutua entre o topo do paredão e a baixa-mar com caranguejos no lodo e pneus enterrados, para que serve isto então? Esta ansiedade da antecipação de uma ejaculação precoce?

Na obra da Alameda está um homem sozinho com uma marreta a destruir paredes como um anormal.
- Oh homem, olhe que isso são paredes portantes, ficamos aqui os dois soterrados.
- Mas o Luís disse que era para partir esta parede aqui.
- Para já você está a destruir duas paredes, depois a parede para partir é só este troço e é só depois de escorar isto tudo e fazer uma viga daqui para ali.
- O Luís é que disse para partir esta parede aqui.
- Hmm.. ok, mas pare lá de mandar o prédio abaixo e faça outra coisa qualquer enquanto eu ligo para ele.

O homem foi beber uma cerveja de uma caixa que tinha ali na sala, quando acabei de falar com o Luís fui à procura dele e estava a mijar de porta aberta, virou-se, vi mais do que queria, foda-se, qual era a necessidade? Ficou a falar comigo enquanto apertava a braguilha com as duas mãos gigantescas, na minha cabeça ecoavam as palavras da Clara acerca dos homens de mãos grandes "melhor barómetro para a pila, Zé, não falha", e eu acabava de o confirmar ali à força, como o Alex DeLarge com palitos nos olhos, e tinha que comunicar-lhe ordens importantes mas não conseguia parar de me enojar com o tamanho da pila do homem, que este homem de pila desmesurada era capaz de cavar a sua própria sepultura com um camartelo numa parede portante e levar com 3 andares pela consciência abaixo "Trabalhador morre soterrado enquanto demolia paredes com a pila". Olhe, vou andando, o Luís depois fala consigo, tenha cuidado aí com o martelo.

Antes de ir para casa tenho vários telefonemas para fazer, fico uma hora no carro a pensar na minha vida, vejo as velhotas no café da Alameda, nunca há velhotes, só velhotas, onde estão eles? O que lhes aconteceu que morreram mais cedo que elas? Doenças venéreas? Coração? Foram elas que os mataram? De propósito ou por inevitabilidade evolucionista?

Vou buscar os miúdos à creche, abraçam-me os dois como se tivesse passado um mês.
- Colo!
- Não consigo levar os dois.
- Leva só a mana pai, ela ainda é pequenina.

A educadora do Henrique diz-me que ele fez um desenho espectacular. Vou à parede dos desenhos, procuro o nome dele e está lá, o hospital, eu e a mãe com os braços enrolados um no outro, ele e a Bárbara às nossas cavalitas, e as gémeas às cavalitas deles, um parque de estacionamento subterrâneo, o nosso carro-autocarro, o sol com raios que ocupam a folha inteira e o nome dele escrito em cirílico. O desenho não é mau tecnicamente, já fez melhores, mas bom mesmo é o estudo da sua própria felicidade fascinada que o miúdo conseguiu deixar ali preto no branco, naquele momento de ir buscar as irmãs em que as expressões dele até em mim ficaram gravadas.

Subo a rua com os dois pela mão, já não aguento com a Bárbara.

- Cocó.
- Cocó mana, não pises.
- Cuidado Bárbara, não estás a ouvir o mano?
- É cocó?
- Sim.
- Não se faz cocó na rua.
- Foi um cão, esperamos nós.
- Temos que dizer ao cão que não se faz.
- Temos é que dizer ao dono para vir limpar isto com a língua.
- O quê pai? Limpar cocó com a língua?!
- Não Henrique, estou a brincar, esquece.
- Eheheh, a mana vai limpar o cocó com a língua.
- Não vou nada!
- Vais vais, tu fazes cocó nas cuecas.
- Meninos, mais nível.
- Vais limpar o cocó com a língua.
- Não vou nada! Aaahrrgg!

Em casa a escatologia continua, a Clara pergunta-me que conversa é aquela, enquanto passeia pela casa de mamas de fora com uma bomba de leite agarrada, digo-lhe que não sei do que falam.
- O que é isso?
- É uma gravura que comprei, a primeira imagem da cidade de Lisboa, séc. XVI, baratíssima.
- Onde é que compraste isso?
- Num alfarrabista em Campo de Ourique.
- Onde foste almoçar?
- O quê? Porquê isso agora?
- Hmmm.. resposta errada.
- Fui almoçar com o pessoal da obra, a um restaurante de Paredes de Coura, bem bom.
- Não foste almoçar ao Principe Real?
- Hã?? Que raio de pergunta é essa?
- Diz lá Zé.
- Clara, não te respondo sem me explicares-me essa pergunta, acabo de chegar a casa com os miúdos, nem lhes dizes olá e abres a inquisição espanhola para cima de mim, que merda! Estás sempre a desconfiar de mim! Não posso falar com ninguém, não posso conhecer ninguém sem me acusares de estar a querer trair-te. Nem um sorriso, nem uma palavra recebo de ti em meses que não seja para me cobrares alguma coisa. Que sufoco!
- Tenho razões para isso, não tenho? Não foste almoçar com a Luísa? Essa gravura não é da loja dela?
- Não! Ahah, que patetice! Joaninha! Não vejo a Luísa há séculos, olha desde aquela história toda. Foi mesmo em Campo de Ourique querida...
- Hmm.. Desculpa lá, mas onde fica esse alfarrabista em Campo de Ourique?
- Não sei o nome da rua, é numa paralela à rua da obra, à Tomás da Anunciação.
- Sim, ou paralela ou perpendicular, certo? Oh Zé, sei perfeitamente quando estás a mentir.
- Não estou! Baby, não estou mesmo! Oh meu amor, vá lá, não faças isto, não falámos o dia todo, chego a casa cheio de saudades tuas! Vou lá contigo amanhã à senhora para ela te confirmar. Querida, anda cá, eu abraço-te. Passei o dia meio deprimido, preciso de te sentir um bocado.
- Estou muita sozinha... aqui em casa o dia todo com elas, é muita difícil, acorda uma, vou dar leite, depois a outra já está a chorar, ponho a primeira no berço, vou fazer o leite da outra que já se está a passar, lavar biberões, esterilizar, tirar leite, mal tenho tempo para me arranjar, para comer, depois dar-lhes banho, depois a Joana começa a chorar cheia de cólicas, estou farta, preciso de mais ajuda. Depois tu ficas todo chateado porque não temos sexo há meses, ficas que eu sei, não falas nisso mas andas todo infeliz, isso pesa ainda mais sobre mim! Não aguento.
- Oh querida, tens razão, mas eu ajudo, eu tenho tentado fazer tudo com os outros dois, eu tenho que trabalhar mas sabes que eu quero que tu sejas feliz. Eu hoje dou leite às miúdas, e trato dos outros, não te preocupes, só te peço algum apoio, mas vou fazer o máximo possível.
- Não é preciso, trata só dos outros. Estava só a desabafar.
- Não! Esquece isso, eu trato de tudo!

Passo o resto da noite numa euforia familiar por descompressão dos suores frios de há bocado, do Rés Vés Campo de Ourique, esta mania dela de fazer perguntas sem mostrar primeiro o que lhe deu a mesa tira-me anos de vida. Os miúdos lutam, a Bárbara não come, o banho é um massacre, mas hoje estou descomprimido, estou exausto mas aliviado, só eu sei como já extravasei raivas com os meus filhos apenas comparáveis às raivas de trânsito, depois arrependo-me, por vezes demasiado tarde para os encontrar ainda acordados e pedir-lhes desculpa, mas hoje não, hoje aguento tudo, e quando aguento tudo vejo-lhes a alegria de estar ali na nossa casa, a alegria de terem uma família funcional, o Henrique não pára de me pedir para brincar com ele, a Bárbara não pára de fazer merda, mexe em tudo o que não deve, mas sorri para mim como uma pateta, entorna um copo de água no sofá, mas pede-me desculpa com uns olhos estudadíssimos, não dá para me chatear. Ficam os dois em cima de mim enquanto dou leite à Carolina, falamos os 3 com ela, o Henrique conta-lhe a história d'O Lobo não morde! "Hey, mana! Não adormeças!" Peço-lhes para arrumar a sala que vamos deitar, arrumam é o caralho, um filho é o pesadelo de um obsessivo compulsivo, 4 filhos estão muito para além da compreensão de um solteiro tenrinho. A bancada do lavatório fica cheia de pasta de dentes porque mandei-os para a casa de banho sozinhos antes de conseguir terminar de arrumar a sala sozinho. Deito-os, 5 minutos na cama de cada um deles, dão-me um abraço surrealmente denso, a Bárbara tem tanto de besta como de framboesa, vêm-me as lágrimas aos olhos quando ela esmaga a cara sorridente contra a minha na maior demonstração de amor que conhece, o Henrique em surdina pergunta-me com 5 anos porque é que existimos... Foda-se, não sei querido, mas gosto tanto de ti. Mal o consigo largar.

A Clara está no quarto a dar leite à Joana, vai dormir depois, eu despeço-me e vou para a sala. Sento-me no sofá, vejo o telefone e tenho um SMS: "O resto do dia correu-me tão mal, fiquei completamente desconcentrada. Cá em casa jantámos à luz do meu sentimento de culpa por males inevitáveis. Porque é inevitável." Eu sei.


agostinhos

tenho uma conversa cínica com o meu sogro acerca do D. Sebastião, digo-lhe que há uma teoria de que apareceu preso em Veneza por pressão castelhana, logo após se acercar à cidade vindo de alguma cruzada intercalar, cheio de marcas de cimitarras, identificado através de sinais no corpo por alguma embaixada portuguesa ao local e libertado, e preso novamente em Itália nas nocturnas pesadíssimas de Florença, com absinto nas veias e duas senhoras não identificadas mais um moço de estábulo da Villa Capra que viajava consigo, absortos nos prazeres da sua androginia. digo-lhe que foi depois novamente reconhecido pelos duques de Medina Sidónia, recebeu Breves Pontifícios de 3 papas consecutivos mas que mesmo assim mercenários castelhanos o teriam conseguido agrilhoar à revelia da lei e assassinar, tendo sido descoberto séculos mais tarde um túmulo perfeitamente identificado no Convento dos Agostinhos de Limoges. Foi um esforço grande lembrar-me de todos os nomes, de todas as curvas históricas que localizavam a acção, dos títulos documentais, Breve Pontifício é um paquiderme de uma designação para introduzir numa conversa regada a vinho verde, Breves Pontifícios, com a língua a sibilar no céu da boca em demasia, com amigos diria "o papel", mas não com o meu sogro, esse Mattoso da raia minhota, expondo infantilmente o pretensiosismo da minha argumentação. que figura idiota.

a Clara tira-me o copo e vai bebendo pequenos goles de periquito, o Menanços solta-a, solta-lhe a roupa ligeiramente e as palavras porcas, até na presença do pai. a mãe da Clara ri-se muito das palavras porcas da Clara. o Menanços solta-a também a ela, goza comigo como se fosse minha própria mulher. fico desconfortavelmente excitado com a excitação que a mãe da Clara emprega nos diálogos comigo, ainda mais quando bebe uns copos e se alia à filha na galhofa alcoólica.

o meu sogro já não me serve vinho. também não faço cerimónia, tiro a garrafa da frente do seu prato, sirvo-me e não sirvo mais ninguém, tranquilo, sem pudor. as refeições acabam, ficamos todos à conversa, sigo-lhe o olhar de cada vez que volto a servir-me de vinho. nesta altura pergunto-lhe se é servido, diz-me sempre que não, assegurando-me que o seu olhar é apenas de desprezo pela quantidade de vinho que bebo. as sobremesas no norte são com vinho verde, a minha boca aqui é cosmopolita, nela cruzam-se os sabores mais inconjecturáveis, escabeche de jaquinzinhos, chouriças de arroz e sangue, pudim de coco, broa de Avintes, partes íntimas da Clara, solha, verde tinto, telhas de amêndoa.

bullshit, responde-me ele calmamente, apareceram 5 pretendentes ao trono, 5 ou 6 impostores que juravam ser o D. Sebastião, todos eles foram mortos pelo sacrilégio e esse foi morto pelas mesmas razões, porque não passava de mais uma farsa. nunca ouviu falar nele, mas não tem dúvidas. respondo-lhe que não sei, não vivi nesses séculos, mas que é apenas uma teoria. teorias da treta, responde-me. calo-me remetido à minha irritação cutânea. volto à carga concluindo que também gostava de ter a sua idade e ter vivido acontecimentos destes para saber do que falo, que muito aprendo com ele. sorri enervadamente e volta a servir-me da garrafa que viu acabar há minutos no meu copo, espreme a garrafa de vidro, cai uma última gota para o meu copo, pousa a garrafa e olha para mim com um sorriso vitorioso de ancião sarcástico. a gota no fundo do meu copo vazio. abro outra José?

as mulheres riem, da conversa secreta que tinham ainda há segundos e da qual me chegavam sussuros sórdidos. a Clara ri-se como quando fala da minha intimidade, riem cada vez mais, pergunto-lhes o que se passa, já não se controlam, segredos de mãe e filha, acerca dos pais e dos filhos. os nossos filhos e netos estão a ver merda na televisão em silêncio na sala, talvez notícias de um massacre na Nigéria. os mosquitos do rio entram quando o pai da Clara abre a porta da cozinha a 480 graus para ir ver se chove a meio de Agosto, sabendo perfeitamente dos hematomas com que eu fico quando sou picado por aqueles pterodáctilos de Caminha, baterias de insectos acotovelam-se para entrar dentro de casa, picando-me apenas a mim e ao meu filho mais velho. Está-se cagando, o meu sogro, diz que também era picado na década de 20 sei lá de que século e hoje em dia não lhe fazem mal, que é bom que o miúdo seja picado agora para ficar vacinado, como as boas gentes do Minho. sou frequentemente colocado fora da linhagem desta família com comentários ácidos deste calibre.

o verão está no pico aqui em cima, o calor e a chuva fazem-nos alternar entre a praia de rio e os jogos de Risco com os namorados das primas universitárias. são gente descomplexada, não entendem muito de estratégia militar nem cognitiva, pelo que mesmo querendo sair do jogo para ir ler o "Heróis em Pantufas" não consigo perder, nem mesmo imitando-lhes a táctica de colocar a carne toda no assador e desafiar a lógica dos jogos de azar e a própria física atirando os dados até perder a dignidade, ganham-me num jogo de perder, não consigo sair da mesa e deixá-los a falar dos seus carros.

D. Sebastião, há estudos e autores que... depois da aliança com o sultão pretendente ao trono Saadita e alguns mercenários cruzados mais interessados em indulgências papais e violações em massa de sultanas do que em Cristo, investiu tudo contra aquilo que na prática era o império Otomano, como faca quente em betão curado. correu mal, como até ele previa. as tropas estavam cansadas da viagem e foi-lhes concedida na noite anterior à batalha uma prova de vinhos à moda quinhentista, estavam na sua maioria de ressaca de vinho mau no sol do deserto, perante um exército 5 vezes superior, que defendia a sua terra. retirou-se da batalha olhando-a antes de cruzar o Atlas, com graciosidade de um Durão Barroso, e contava voltar caramelizado a tempo do V Império cujo mito acabou apenas por adensar.

retirou-se logo no início com um conjunto de jesuítas pertencentes ao terço central da estrutura hipodâmica em que se dividia o exército português, o terço dos que não estavam ali a fazer nada de tacticamente relevante, além de clérigos havia mulheres de conforto em número maior que os próprios militares, estas mulheres, na maioria portuguesas das terras acima de Santarém, ficaram por aquelas bandas no fim da batalha, sobretudo por falta de boleia para cima, com pouquíssimas baixas, e contribuíram para a miscigenação dos países do norte de África, que ainda hoje são depreciativamente chamados de Galegos pelos povos da África subsariana. já os religiosos eram enviados pelo Cardeal D. Henrique e estavam a par da fraqueza do Rei adolescente pela luxúria e a glória fácil, estavam ali para ajudá-lo a ele e não a humanidade, enquanto isso lhes permitisse trocá-lo no trono pel'O Casto, mas por evidências da designação, este não deixou descendência e os reis espanhóis trouxeram o seu próprio tribunal do santo ofício. enterrou-se em Alcazar um corpo, sim, mas foi o de um turista inglês algo fútil que comandava um pelotão de italianos recrutados originalmente para atacar a Irlanda, curiosamente também era hermafrodita, o que confundiu a identificação e facilitou o embuste da morte do Rei. demasiado patético para sobreviver, Stukley foi morto por uma bala de canhão nas pernas quando tentava ainda hastear uma bandeira arco-íris ad-hoc que lhe fora descrita por um camponês alemão nas suas itinerâncias continentais. D. Sebastião tentou perder num jogo de ganhar, e perdeu-o, mas acabou em Itália na intermitência entre a prisão e a boémia de sarjeta, a tentar que acreditassem que era rei, bêbado decerto, enquanto o seu corpo jazia em Marrocos em duas valas distintas separadas de 25 metros.

por vezes no cimo do baluarte da Restauração num fim de dia dourado com a Clara e os miúdos, olho na direcção da foz, do Camarido, e do amanhã, e digo-lhes, é dali que ele virá, o nevoeiro, para foder-nos mais um dia de praia.

dias de festa

alguém sem filhos que passasse as ombreiras da porta pombalina de numa festa de fim de ano numa creche lisboeta ficava desde logo desmotivado pelo próprio mote, as próprias crianças, pazadas delas espalhadas por todo o lado gritando de braços no ar como gansos num galinheiro misto, não há copos de álcool, não há gente solteira, ou não é fácil de identificar, não há conversas fora da esfera da parentalidade aventureira, seria difícil explicar-lhe porque alguém havia de entrar aqui mesmo tendo filhos, e passar 2-3 horas de sorriso aberto na cara ao longo de várias performances teatrais mediocremente amadoras dos próprios filhos que não parecem ser fadados para nada do que lhes vai acontecendo, passar 4-5 horas com cara de carneiro ao longo de uma missa campal celebrada pelo prior de Santa Maria de Belém, que canta, e que convida a mãe de alguém para ler um salmo, aterrorizando todos os pais incautos que não sabem que aquilo foi preparado e se sentem emocionalmente transportados para uma aula de físico-química durante uma chamada ao quadro, e ao longo de um arraial de sardinhas que todos trocaríamos por um arraial de porrada desde que estivesse grelhado em condições e houvesse uns jarrinhos de branco ou até de verde tinto e não fosse tudo regado a Jói maracujá.

eu que trago filhos agarrados às pernas dos calções e às vértebras do pescoço também não entendo o sorriso de tanta mulher que já foi bonita imediatamente antes de se esvair em crianças pelas pernas abaixo porque "todo o esperma é sagrado", e deixar acumular leite em pó no diâmetro superior dos braços e na peidola, o sorriso de tanta mulher exausta neste caos de filhos dos outros a correr com copos de sumo na mão e na roupa e sandes de Panrico a escorrer nos cantos da boca como se fossem os sonhos dos pais mastigados e cuspidos, entre palavras de negação e de desconsideração pelo esforço da comunidade em preparar-lhes um ambiente saudável e aquele repasto. mas não acho difícil forçar o hábito de redireccionar o estado de alma logo após o primeiro quarto de hora ao sol, aí já desfiz o sorriso amarelo, já não me ralo com as gotas de mar salgado que me escorrem pela cara limpando-as tranquilamente às mangas da t-shirt de sovaco alçado na direcção da cara da mãe do meu lado direito que se abana com o programa das festas e os versos católicos, que também ela sua como uma mulher a sério, não penso duas vezes antes de me levantar a meio da procissão de animaizinhos vestidos como se fossem crianças mascaradas de animais, e ir procurar uma sombra para perto da zona das comidas que ainda ninguém inaugurou, onde já outros pais se acotovelam em conversa de circunstância e de descompressão e roubam croquetes colocando-os de uma só vez na boca virados para a parede.

já todos reparámos na longa percentagem de rego exposto no cimo das calças de todas as mães que se sentam em cadeiras de crianças, está calor e as camisas esvoaçantes e curtas terminam a meio das costas lançando um rio de lágrimas daí até terminar no fio dental amarelo ou na cueca de renda preta que salta das calças compradas de propósito para acomodar uma tranca a caminho dos 40, e aquilo já não excita nenhum dos pais, estão de telemóvel na mão e pescoço torcido como adolescentes, os que conseguem não fumar, porque desde que se passou pela primeira vez no ano lectivo corrente as ditas ombreiras das ditas portas a testosterona refreou-se a um ponto confortável para não mais perder esse reflexo pavloviano, tolera-se como Cristo um ano inteiro de chapadas de melões maternais saídos dos decotes largos que nenhuma mulher se esforça por amestrar quando se baixa para tratar de uma criança. aquilo não é corpo, é a maternidade extrema, não tem um laivo de doçura sexual porque elas não estão ali pessoas, é o ser carnal tornado veículo de emergência, ministério da providência e da guerra em defesa do território pró-vida e dos pequenos porquinhos seus filhos.

é spam, mete nojo, mamas, mamas, mamas, regos e cuecas de sair à noite em corpos de governantas semi-novas, um homem converte-se a projectos de vida da catequese alheia e lentamente anula-se como predador sexual, vê um mamilo espreitar de um sutiã roxo e pensa nos filhos a alimentar-se, vê um fim de costas aberto e a penugem ascendente de um pescoço descoberto e lembra-se de sacos de supermercado a subir as escadas em equipas de dois, vê uns lábios carnudos e ouve a voz constante de 10 anos fazer observações agravadas sobre problemas crónicos, até que um dia, numa festa de escola, em que distraído a olhar um belo par de mamadeiras pendente de um corpo dobrado, uma cabeça levanta e sorri-nos e diz tão bem do nosso filho mais velho, porque a filha dela é apaixonada por ele e ele é tão esperto e tão bonito, como o pai, ahah, estou a brincar, não estou nada, esta mãe não me mete nojo nenhum, foda-se é bonita e está grávida a dar com um pau, e então enquanto ambos lavamos as cuecas borradas dos nossos filhos no lavatório da escola, sorrimos e trocamos piadas e confidências pouco abonatórias para fazer o outro gargalhar e ressurge o instinto obcecado de conduzir conversas no limite do humor de engate, que desarma e planta cirurgicamente ideias e imagens na cabeça guiado apenas pelo radar único das expressões faciais de encanto, encantar uma mãe grávida. enquanto todos os pais e mães trocam conversas e de parceiro, e os umbongos sobem à cabeça no sol de Junho, todos temos orgulho nas crianças que são nossas e nas que não são porque de qualquer forma não temos que as aturar, e todos admiramos impunemente a nossa mulher distraída ao longe a comer um arroz doce julgando-se abrigada do nosso olhar crítico como nós do dela, comendo-a nós a elas com os olhos, e uma parafilia renasce dentro de nós homens pais, todos, com grávidas nuas e mamilos enormes, e ancas abertas, e vestidos sem função com carnes nuas que espreitam em festas de crianças e vamos para casa ao fim de um dia de festa, a correr com a nossa mulher grávida de gémeos e com os dois miúdos no mesmo braço másculo, mal esperando por chegar a casa e contar a conversa que tivemos com a mãe da Maria Jaquina e do Manel Patrício, alavancar a nossa fantasia com outras pessoas do nosso círculo de festas de crianças e apelar ao ciúme saudável, e ela acha um piadão e ri-se de gargalhada, e que o marido dela também é um pão, que ela o comia com batatinhas e lambia o prato todinho, e que até trocou umas palavras giras com ele, e a gente roça-se na barriga de grávida da nossa mulher e sente-se pequeno porque não a consegue agarrar toda, e os nossos filhos são tão lindos! e estão ali na sala a auto-educar-se com o Canal Panda e o Canal Porco, e a gente beija-se esquecido eu de como se beija uma mulher grávida, e desajeitado intromete-se um pau duríssimo escalando do topo dos calções ao umbigo como um marsupial adolescente, capaz engravidar um batalhão de freiras das Salésias, e vamos fazer trigémeos, anda meu amor, e o vestido de verão largo tenta cair pela minha mão esquerda porque a direita está a avaliar a renda por dentro, e ela diz que não lhe apetece, porque está deveras grávida, e que eu já sei como a minha pila pronta lhe deixa a libido dorida, e que tem que pensar na roupa dos miúdos para o mês que se avizinha, que talvez amanhã, que talvez para o ano.

coabita-se

Todas as noites a Soraia ia ver o telefone e tinha uma mensagem do homem que andava a foder.
Era uma sequência complicada, tinham acabado de se despedir no hotel, ele estava em casa em 15 minutos, ela demorava meia hora e durante a viagem, nada, por vezes ficava no carro à espera da mensagem dele, e nada, tirava o som do telefone e enfiava-o no fundo da mala antes de subir as escadas, não fosse a luz do visor desmascará-la em frente ao marido, a luz do visor que teimosamente acendia quando recebia uma mensagem, "tens que mudar isso nas opções de notificações", dizia-lhe o Telmo, o seu tech savior de trazer pelo escritório, que engoliu com batatas a história dos sms de publicidade da Telepizza de madrugada que estremeciam o seu sono de borboleta. Na verdade andava a foder com tal brutalidade que chegava à cama e caía inanimada até ao dia seguinte, nada a acordaria, ainda que a Telepizza e o Holmes Place enviassem de facto mensagens de madrugada.

Escolhia cuidadosamente a mala de manhã adicionando um critério à elegância: opacidade, se era dia de queca. Antes deste critério, chegou um dia a casa e deu de caras com o marido no corredor, telemóvel na mão, virou-se para a parede para pendurar a mala de pano translúcido enquanto enfiava nervosa o telefone dentro das cuecas, por baixo dos curtos calções brancos. Como sempre, foi nos instantes mais inoportunos em que entrava à porta que recebeu a mensagem, ficou com a passarinha a reluzir como o coração de jesus por baixo da túnica, o seu marido tinha acabado de lhe dizer "hhmlá".. desinteressado e voltava para a sala, mas ela transpirou com tinha transpirado meia hora antes nos braços do personal trainer, e entrou na casa de banho a tremer tanto que partiu um salto e teve que vomitar só um bocadinho.

Depois com as providências da mala opaca entrava com segurança em casa, depois directamente para a casa de banho, lavava-se outra vez, tinha sempre uma enorme vontade de fazer xixi, via a mensagem que consistia sempre numa variação de uma frase feita qualquer que lhe dava vergonha alheia. E vergonha própria por andar a foder aquele homem bimbo de pila demasiado gorda mas que sabia lambê-la como um cão baboso, como nenhum outro homem o tinha feito na vida, nem durante o grande bacanal que foi encontrar-se de repente solteira e linda aos 27 anos, depois de se separar do namorado fofinho que tinha desde os 18, e antes de casar com o Joca, esse calhau de granito que nunca quis saber do seu passado sexual, nem dos seus apetites, diga-se, mas que era de facto um homem adulto como ela precisava para se sentir mulher adulta.

No primeiro orgasmo que teve com o amante que parece um segurança pensou que não conseguiria conter os esfíncteres e que ia tudo correr muito mal para cima da cara dele, enquanto isso sentia soltarem-se-lhe do peito uns urros incontroláveis, depois a energia fugiu-lhe dos músculos de tal forma que quando ele lhe subiu para cima e a alargou com aquela espécie de pequeno extintor, não teve forças para lhe dizer que lhe doia um bocado e limitou-se a ser fodida dos dois lados durante 20 minutos que lhe pareceram 2 horas. Naquela primeira viagem de carro chorou o caminho todo com a estranha impressão de ter sido inapelavelmente violada por alguém que não conseguiria articular duas palavras para a seduzir a tomar um café. Mais tarde tomou-lhe o gosto, sentiu que o prazer compensava o mal de consciência, as posições eram sempre poucas, o que agradecia após tantos anos de miúdos eufóricos a testar a elasticidade da pila e da sua paciência, e além de poucas as posições  eram assumidas como uma marioneta, pelas mãos maciças do PT, o que a libertava para se concentrar na sensação porcalhona de ser empalada por um gorila. Foi com ele descobrindo o seu próprio corpo, mas não lhe atribuía grande mérito nos achados além do sexo oral, tudo o resto era fruto do ponto de maturidade da sua luxúria que nunca morreu mesmo após 10 anos de casada com um armário trancado à chave, nas palavras e nos actos sexuais.

Odiava-se contudo por se expôr a este homem por mera fragilidade emocional, odiava-se por trair a parte da família que não deixava de amar, a filha, odiava o marido por colocá-la naquela situação, por desprezá-la, por se comportar como se estivessem irremediavel e despresivelmente presos um ao outro por causa da miúda. Culpava-o pelo mal que sentia o seu adultério trazer à casa. Odiava o nome dele, hoje em dia preferiria tratá-lo pela ordem correcta dos nomes, Cajó, mas Cajó soava-lhe mais pateta do que patético, e não queria imprimir qualquer tom jovial à comunicação entre ambos. Todos os dias acordava pensando em separar-se, preferindo que fosse ele a fazê-lo ou a dar-lhe uma desculpa mais taxativa, indesculpável, que a sociedade não lhe permitisse continuar a fugir com o cu à balança, pegar na miúda e ir viver para perto dos pais.

O PT (chamemos-lhe Manelinho das Couves), o Manelinho das Couves era "bom de cama", péssimo para um diálogo, o que a embaraçava quando se lembrava dele no quotidiano, nomeadamente em frente à família. Soraia pediu-lhe para parar de enviar mensagens porque a colocava numa situação de terror constante em casa, terror de ser apanhada, mas na verdade foi porque tinha suores frios e náuseas quando as lia, estragava-lhe a boa sensação deixada pelo bom sexo, o cheiro dele indelével mesmo depois do duche já não era o cheiro do prazer, mas do bimbo de lá do ginásio que lhe pôs as patas em cima. Curiosamente achava-o bastante querido ou nunca teria baixado os corsários para a queca pirata, a conversa bimba ao vivo tolerava-se muito melhor, sobretudo depois de fazer exercício, com as defesas todas em baixo, mas a bimbalhice lida era como tentar escutar a letra de uma música da Rebeca, parecia a gozar, mas sabia-se que não era. Ele não entendeu, pensou que o clima de adultério e a inobservância das instruções dela ajudariam a mantê-la com o coração e o pito aos saltos, rebelde, e continuou a enviar mensagens, forçando a Soraia a desistir das quecas, e depois do ginásio. Mas já não era a mesma pessoa.

Surgira entretanto em cena um menu muito mais interessante, que a ajudou a ignorar as mensagens desesperadas do gorila, alguém do passado, e é bem sabido, as quecas que se falharam enquanto jovem têm o apelo da vingança de uma juventude perdida, do orgulho ferido, ou do prémio não reclamado quando reaparecem, mesmo mais velhos, mesmo mais desenganados com a vida, mesmo casados e com filhos, e até fisicamente alterados, a memória emotiva é extremamente forte. Ainda por cima, para mal dos pecados da Soraia, não havia quaisquer certezas na nova situação que se afigurava, não estava assegurada, e esse era o brilho no olho do peixe. Pedro "Preto", das noites infindáveis nas esplanadas sobrelotadas da adolescência e das tardes de praia no inverno a ver heats de bodyboard, padecia agora do mesmo mal que ela, o matrimónio. Tinha uma estranha capacidade de resistência ao charme internacionalmente famoso da Soraia, mas nunca permitia que lhe restassem dúvidas acerca da sua disponibilidade. Então... que caralho, faltava a prática, e isso estava a deixá-la ainda mais ansiosa do que estivera quando tinha 16. Não sabia o que tinha que fazer para despoletar o processo, nunca precisou de aprender isso, não se lembrava de um homem a deixar assim sem usar as mãos. Estava doida, sentia-se pronta a todo o momento, perdeu a vergonha de ser apanhada. Na brutalidade sexual com o Manelinho das Couves tinha-lhe faltado a componente da antecipação. Agora sim, sentia-se solteira dentro de uma relação de séculos, sentia-se feliz e capaz de trair sem remorso. Não via qualquer necessidade de se separar do Cajó, o colega de casa, o seu co-progenitor, o homem que merecia que não lhe pedissem o divórcio. Sem qualquer prova material que o justificasse, abraçava o adultério na divina graça do Senhor.

as pequenas mortes

a Júlia fechava o bar e ficávamos todos lá dentro, muito bêbados, enquanto ela contava o dinheiro da caixa. a confiança entre o grupo era de tal forma, confiança cega de pessoas da noite que acham que encontraram as almas gémeas no fundo de copos de wishkey e cerveja, que por vezes as contas não batiam certas e todos queriam contar o dinheiro, e ela deixava. o primeiro que contasse mais dinheiro do que era suposto haver, fechavam-se as contas, e prosseguia-se noite fora a tirar imperiais, a fazer tostas mistas, linhas de coca, teorias da conspiração e da relação conjugal, etc.

por volta desta hora (três, quatro), com a porta do bar fechada, todos os casais se desfaziam e acabávamos todos em conversas privadas com a namorada do próximo, geralmente de entrosamento facilitado. e a piada era essa, não haver pinga de adultério ali, apesar de todas as bocas trocadas em conferência aberta escorregarem para o facilitismo da piada swing. disse-me o Pedro certa vez enquanto eu fazia uma massagem nos pés da Sofia para ir com ele à casa de banho, se a minha pila não fosse muito maior que a dele, que tinha o seu aval para levar a Sofia a dar uma volta. era uma piada, disse-o e repetiu noutras ocasiões para toda a gente se rir, mas em privado diria a mesma coisa, sobretudo porque ele queria comer a Júlia desde que eu me lembro.

havia um entendimento tácito de que tínhamos que ter cuidado, alguns do grupo eram mais constantes, eu e a Júlia, o Pedro e a Sofia, o Manuel e a Rita, se estávamos só nós as conversas eram mais ordinárias mas com o day after mais presente. mas se por acaso havia alguém solteiro, se valesse a pena e era raro deixar alguém lá ficar que não valesse a pena, era todo um bando de papagaios para um estendal curtinho. foi numa dessas ocasiões que conhecemos a Jessica, uma loira de cabelo solto, surpreendentemente inteligente e de ironia fina (finíssima pá), de sorriso aberto e gargalhada genuína. era aspirante a actriz, na época da goldrush televisiva.

por sorte minha, a Júlia era afoita e viciada em fazer toda a gente gostar dela, cedo descobriram afinidades femininas e passavam noites a fim a gozar com os homens em geral, comigo em particular. a Jessica engraçava comigo também, notava-se na forma como me picava com desgarradas libertinas acerca da minha fraca virilidade, acompanhadas de sorrisos, que interpretava como "quero-te comer enquanto a tua namorada observa".

uma famigerada noite que começou com o aniversário de alguém e que trouxe muita gente nova ao fecho privado do bar, a Jessica foi elevada a habitué por contraste, passou para trás do balcão, ajudou nos shots e imperiais e embebedou-se terrivelmente com a Júlia, a ponto de o Pedro me vir buscar à mesa quando eu conversava com duas dinamarquesas não me lembro em que língua, para ir ver o que se estava a passar: Júlia e Jéssica aos melos na cozinha. Pedro pôs-me a mão no ombro e disse-me sentidamente "cabrão".

saímos da cozinha desorientados, tirei um cigarro, naquela altura fumava quando não sabia o que fazer, e o Pedro perguntou-me se não queria antes ir com ele à casa de banho dar uma linha. fomos à casa de banho mas não dei linha nenhuma, não queria gerir aquilo com a impetuosidade da coca. "leva-me contigo" disse-me o Pedro "podes foder a Sofia sempre que quiseres, ou melhor sempre que ela quiser", mais um golpe de barro à parede do nosso amigo nocturno que tranquilamente me veria em cima da namorada, mesmo que não pudesse comer a Júlia, desde que o mundo pudesse ser lindo como sempre foi, e ele pudesse acreditar que seríamos sempre amigos, e o cor de rosa fosse a cor do negócio dos bares. eu também queria acreditar que seríamos sempre amigos, mas geralmente não conseguia encarar aquelas pessoas à luz do dia, o que dificulta uma amizade ortodoxa.

saímos da casa de banho e já só o núcleo duro restava, Jessica e Júlia tinham saído do recontro da cozinha, e agora mais calmas com a língua, mas mais agarradas ao rabo uma da outra e em performance teatral para os nossos amigos, começaram a planear matar-me. morte por sexo foi a escolha óbvia, mas antes Lux, uma decisão que eu não entendia, porquê Lux?, vamos só perder tempo, a noite está decidida, quero morrer depressa.

Pedro, Sofia, Rita e Manuel, enterneciam-se com o nosso three-way porvir, eles mais que elas, sugeriu-se um bacanal mas Júlia e Jessica não estavam para me partilhar com homens. notei alguma satisfação entre eles que eu não fosse já para casa com elas, adiando a certeza dessa inveja que sentiam. íamos ao Lux então, últimos xixis, e pela primeira vez pude perguntar à Júlia sem palavras se aquilo era mesmo para ir para frente. "acho que sim" disse-me, "sabia que ias adorar". estávamos os dois agarrados aos beijos quando a Jessica se aproximou, agarrámo-nos os 3 e beijámo-nos os 3, com os holofotes acesos sobre o meu beijo com a Jessica. só o Pedro viu e agarrou-nos também, a velha piada do empata-fodas, resulta sempre.

com a confusão de fechar o bar, com Pedro e Manuel ansiosos como miúdos para me fazer perguntas, dar sugestões, fazerem-se convidados, as miúdas foram todas juntas de táxi antes de nós, e eu só pensava que ainda me ia fugir tudo das mãos, bastava que embebidos em álcool como todos estávamos alguém perdesse tempo desnecessário a falar com um amigo chato, a discutir com um taxista, à espera na fila do multibanco, para o clima e os caminhos se descruzarem ou as linhas do destino sexual, pelo contrário, se emaranharem por completo e eu acabar no Lux a conversar com um indiano que vive em Chicago e que está cá a fazer um doutoramento numa cena desinteressante ligada à criação de perus.

à porta contudo, o Miguel cumprimentou-nos espirituoso "boa noite, as suas duas esposas já entraram" sorriu, e rimos todos muito, porque era o Miguel que nos dirigia a palavra, eu ri mais que os outros por confirmar que estava tudo sobre carris. entrámos, era daquelas noites em que parecia que havia ecstasy no ar condicionado. logo no bengaleiro encontrei a Mia, óptima, uma ex-relação mal terminada, a conversa correu lindamente para tantos anos de frieza protocolar. estava divertida, disse que eu estava giro, acariciou-me o braço de alto a baixo, perguntou se ainda estava com a Júlia, quando o confirmei fez um ar desiludido de sorriso pornográfico, pronto, estava completamente bêbada, mas bêbada conta. a minha hiperconfiança acumulada até aí facilitou-me a despedida. enquanto o Manuel encontrou a Rita, o Pedro e eu fomos procurar as dissidentes, primeiro no andar de baixo, no estado em que estavam era de prever que estivessem a dançar nesta selva. não estavam. encontrámos dois amigos do Pedro, um deles tinha visto as miúdas no andar de cima e perguntava-lhe quem eram as duas amigas da Sofia, estava doido e o Pedro disse-lhe "têm namorado". subimos, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei, pelo caminho encontrei, depois três gays nas escadas pararam-me, olhos muito abertos "ai filha!" perguntaram o que usava para ter aquele bronze, "melanina", um deles não riu. eu era o rei, furava pela multidão com olhos postos em mim, daquelas noites em que Deus me pintou de dourado e tenho a certeza que vou acabar na cama, eventualmente sozinho.

o Pedro queria ir outra vez dar na coca, esperei por ele à porta da casa de banho, tenho ideia que a minha vida nocturna foi muito passada à porta de casas de banho. apareceu a Marta que recolhia copos, fez a festa da nossa relação nunca consumada "Zé!" abraçou-me com o braço que não tinha bandeja, e os seus beijos lambidos soaram-me melhor que nas outras vezes, "a Júlia está ali com a Jessica, ao pé da varanda, estava a dizer-me que estava só à tua espera para irem embora". óptimo! havia uma máquina de preservativos nova na entrada da casa de banho, coisa em que nunca antes tinha reparado, nem voltei a ver ali depois. interpretei aquilo como um sinal, optei por abastecer-me, em casa não havia nenhum dentro do prazo, só uns apertadíssimos que me deram na rua, certamente sobras do mercado asiático ou modelos para distribuir nas escolas primárias, a Jessica podia não achar piada à minha facilidade em ignorar regras básicas de sobrevivência. que digo? a Júlia é que podia não achar piada. havia 3 tipos de preservativos em duas quantidades, escolhi uma caixa de 3 preservativos de sabor a mentol, porque pensei bêbado que o mentol era melhor para desenjoar do álcool e porque éramos 3. foi um raciocínio infeliz, fruto da pressão das circunstâncias.

o Pedro saiu da casa de banho, encontrámos imediatamente a Sofia "Zé, a Jessica está um bocado mal" o quê? não quis entender à primeira, falávamos aos ouvidos uns dos outros por causa da música para demolir edifícios, quando percebi não quis acreditar que ela estivesse assim tão mal, mas chegámos perto da varanda e Jessica tinha a testa pousada na mesa, já tinha ido vomitar várias vezes e não queria que lhe tocassem. era a primeira grande bebedeira da sua vida, dizia ocasionalmente. Júlia amparava-a e olhava para mim "olha menino, kapputt!", estava mais preocupada que desiludida. "água" disse eu ao ouvido da Jessica "bebe água, muita água, isso vai passar" num esforço patético para endireitar a minha vida.

a Jessica veio dormir a nossa casa, completamente derrotada, deitámo-la no sofá. Júlia deixou-me assistir enquanto a despia e a Jessica murmurava "perdoem-me! que vergonha! podem fazer de mim o que quiserem desde que não me abanem muito", eu fui buscar um cobertor para se tapar e um balde que coloquei aos pés do sofá "Jessy, está aqui se te sentires mal". agradeceu-me imenso.

2007, hoje

- quando é o nosso aniversário?

Júlia mexe a colher no café procurando disfarçar o interesse da pergunta, o sorriso admite-o.
- sei lá. diz-me tu.
- dia dos namorados, 14 de Fevereiro?
- que patetice, esse foi o dia em que saíste de casa da Sofia, fomos só tomar café.
- eu sei, mas então? em que dia foi? foi no sábado seguinte, dia 17? é o sexo que marca o início da relação?
- sim, e depois andaste na cama com 50 mulheres até ao Natal. iniciaste 50 relações diferentes.
- foram só 30. e tu, estiveste com quantos homens?
- nenhum.
- mentirosa. estiveste pelo menos com aquele Rogério da pila grande.
- que ridículo. não estive nada com ele, só fomos tomar café umas vezes apesar dele ter tentado reatar coisas antigas. e fui tomar café porque tu andavas a dar-me para trás e fazias-me sentir uma merda. ele apanhava-me no facebook e andava ali a insistir até eu aceitar. sentia-me com baixa auto-estima, precisava de me sentir desejada. não gosto nada de me lembrar disso, de me ter exposto a ele nessa altura.
- porquê?
- porquê o quê?
- porque é que não gostas de te teres exposto, se foste mesmo só tomar café não entendo em que foi que te expuseste, se já tinhas estado com ele na cama antes e ele voltou a querer estar contigo até é bom sinal. geralmente depois do sexo os homens perdem a ansiedade, se realmente só estiverem interessados em levar-te para a cama.
- pois, se calhar foi por isso que perdeste o interesse em mim depois de 17 de Fevereiro.
- não perdi nada. não estou aqui a tomar o pequeno almoço, 8 anos depois?
- fiz um esforço épico para te conquistar durante esse ano.
- e passaste os 7 anos seguintes a descansar sobre os louros.
- vamos discutir?
- não, estou a brincar. 17 de Fevereiro é uma data estúpida, eu ainda não tinha ultrapassado a Sofia, por isso é que não quis agarrar-me a ti, sabes isso.
- mas também não me soltavas.
- isso é bom sinal, já te disse. e também já te disse que ainda aqui estou.
- então e quando é o nosso aniversário? 26 de Dezembro?
- acho que isso também é desprezar todo esse ano, ainda fizemos boas memórias.
- entre essas memórias contam-se as 70 mulheres com quem estiveste.
- foram só três ou quatro, ou 5. e são boas memórias para mim, sim, mas tu tens o teu próprio percurso gravado na minha cabeça.
- oh, que orgulho. tens pistas de corrida gravadas na cabeça e eu fui a mais rápida a cruzar a meta.
- mais rápida não, és uma corredora de fundo. foste a mais resistente.
- essa merda soa pessimamente.
- pois soa, mas o que quero dizer é que foi a ti que eu escolhi para chegar ao fim.
- ainda estamos longe do fim, não te entusiasmes.

Júlia mexe a colher na chávena vazia tentando apanhar a espuma que resta do café, procura disfarçar o orgulho em puxar incessantemente o tapete da sua felicidade ao pai dos seus filhos.
- o dia do meu aniversário foi um dia bom, depois dos santos fomos para tua casa e quando acordámos deste-me um cabaz de brinquedos e rifas de vales personalizados de massagens e jantares que nunca cumpriste.
- nesse dia desapareceste a meio da tua festa com uma miúda qualquer e apareceste horas depois com cara de ter tido sexo, para ir dormir quentinho a minha casa.
- tu tens memórias péssimas de mim. só ficaste comigo porque fui difícil de agarrar? eu tenho boas memórias tuas.
- pois tens, eu só proporciono boas memórias. a todos os homens.
- sabes aquela minha amiga que teve uma paixão na adolescência por um gajo popular lá da escola dela, uma paixão que durou anos e cuja memória se manteve pela maioridade, alimentada pelos fugazes contactos que ela conseguiu forçar nesses anos... e aos 30 anos ele reapareceu... gordo, meio careca, ligeiramente alcoólico, ligeiramente desempregado, inteiramente idiota, pretensioso e falhado, e muito mais disponível para ela, como seria de esperar, e ela vive com ele há 3 anos de martírio não declarado e impaciente?
- sei.
- podias ter-me interrompido. bom, achas que da perspectiva dela ele é a mesma pessoa? claro que não. achas que a memória que ela tem do tempo em que o amava ao longe se impõe como a figura da pessoa com quem vive agora? achas que ela sente a obrigação de aproveitar esta dádiva de Deus que foi o regresso de quem a fez sofrer durante tanto tempo por desinteresse? que ela ama o mito que criou numa idade em que a memória é gravada em fogo, e não o homem por trás do mito? é que por vezes sinto-me um gajo gordo, careca, falhado, sombra do que fui ou do que projectaste em mim, de quem tu só retiras a memória do que te custou adquirir, e que simplesmente não queres passar novamente com outra pessoa por tudo o que passaste para chegar a mim. como se tu não quisesses perder a relação, o estatuto, a memória, e não a pessoa.
- acho que és parvo. a minha relação contigo não tem nada a ver com essa. a tua amiga gosta do namorado, seja porque razão for, mesmo que esteja iludida acerca dele. eu tenho raiva de ti, muita, por várias razões. mas és meu, amo-te.
- ahahah, até foste buscar essa palavra maldita! parece que estou a assistir uma telenovela portuguesa, nem te sai bem dos lábios essa merda.
- ahahah, quando eu a digo tu gozas comigo, vês? é por isso que eu não digo estas coisas.
- foi querido. até o facto de teres admitido que tens raiva de mim. adoro-te, deixa-me manter na memória institucional a nossa relação inteira: 10 de Janeiro, quando dançámos kizomba nos teus anos.
- que parvoíce, ainda vivias com a Sofia.
- eu sei, mas foi a dançar abraçado a ti, juro, que decidi que queria ter filhos contigo.

Júlia perde momentaneamente a noção da coordenação motora e agarra com os dedos todos a colher suja de café, deixando-se invadir pela nostalgia, rara em si, mas violenta e feliz quando envolve os actos de amor na origem dos miúdos.
- que estupidez. vou tomar banho.

Perpétua

- pronto, eu vou para a sala agora, está bem? dorme, dá-me um beijinho.
- pai.
- diz.
- o avô da Sara morreu.
- ... foda-se.
- foi para o céu, e não volta nunca nunca nunca nunca mais.
- foi? pois. já devia ser muito velhinho.
- pois era, e ele magoou-se num pé e depois morreu. agora ele é uma estrela.
- uma estrela. claro, é uma estrela.
- quando eu morrer vou ser uma estrela?
- ah, não penses agora nisso, ainda faltam muitos anos.
- faltam muitos anos?
- sim.
- quantos?
- muitos.
- quando eu for muito velhinho?
- sim.
- quantos anos tinha o avô da sara?
- não sei, tinha mais que muitos.
- quantos anos tens tu?
- 37.
- eu também vou ter 37 anos?
- sim.
- quantos anos tem o avô Pedro?
- 70.
- o avô Pedro é muito velhinho.
- nada disso, está agora a sair da puberdade.
- mas ele disse que era.
- ele estava a torturar-te psicologicamente.
- quando eu tiver 37 anos quantos anos tu vais ter?
- 70.
- como o avô Pedro. e quando eu tiver 70 anos quantos anos vais ter?
- 115.
- e quando eu tiver 115 anos quantos tu vais ter?
- 164.
- e quando eu tiver 164 anos quantos anos tu vais ter?
- vou ter muitos, falta muito tempo Henrique, não penses nisso.
- e quando eu tiver 164 anos o avô Pedro vai morrer?
- filho, ainda faltam muitos anos, não penses nisso.
- eu não quero que tu morras.
- Henrique, eu nunca vou morrer.