perder Judas

houve agora algum tempo e conjuntura para pensar num amigo perdido, conjuntura formada pelas férias e por um vazio profundo de determinados interesses e opiniões comuns, que ele preenchia sem esforço, e que eu desconsiderava sem consciência, pensando que este tipo de relações era inevitável, que acabávamos por nos fazer rodear de pessoas que nos faziam sentir assim, que era isso a que chamávamos amigos. mas não, os amigos são outra coisa, possivelmente mas não necessariamente coincidente.

tenho pensado, porque me é querido e custoso, no anormal caso de um gajo culto, competente, giro, genial, jovial, justo, o Judas, que vive sozinho, despojado de mulheres e amigos. vive, não habita, vive sozinho, não por opção consciente mas por ser um filho da puta, sem maldade intrínseca, mas o mais puro filho da puta, se é que existe alguma universalidade nesse conceito. na verdade não vive despojado de mulheres. na verdade, as mulheres são a única coisa que lhe resta. e são muitas. são centenas, talvez milhares, se manteve o ritmo desde a última vez que fomos amigos. mas nenhuma é a sua mulher.

o Judas perdeu-se depois de uma experiência falhada em viver com a nossa amiga Madalena, seu amor platónico nos anos universitários, depois de explodir entre eles uma paixão assolapada de que me envergonha falar, porque sinto que dei por ela demasiado tarde e que fui empata-fodas durante demasiado tempo. aliás, desconfio que nem cheguei bem a ser empata-fodas, o que me parece pior, porque foi na mais completa ignorância que o não fui.

enfim, acabaram mal. nenhum deles queria perder o outro, mas nenhum quis permitir que fosse o outro a pôr um ponto final naquele martírio matrimónio. ficaram os dois na merda e orgulhavam-se imenso de terem sido eles (cada um deles, isoladamente) a decidir o fim da relação. discutiram bastante em público nos anos seguintes, até que deixaram de se comunicar a não ser para enviar mensagens anuais de parabéns. hoje já até dos ânus um do outro se esqueceram.

soube também demasiado tarde a história dele com amigos e mulheres. um grande amigo seu que conheci bêbado, foi um monte de merda, perseguiu sem piedade uma ex-namorada do Judas, ainda fresquinha, por uma antiga paixão clandestina inexplicável (que lhe toldava o raciocínio e a moral, o que é comum). esta ex-namorada, abandonada de surpresa, sedenta de vingar-se do Judas com sangue, entregou-se como virgem devota ao amigo que antes desprezava, entregou o inentregável, filmou e enviou-lhe por email. este episódio ficou forçosamente gravado na memória e na personalidade do Judas, que me confessou ter ficado viciado no vídeo, tendo ritualizado durante aproximadamente dois anos uma visualização diária antes de se deitar, a maioria das vezes com um copo de whisky numa mão e a outra dentro das cuecas, apesar de com o amigo ter cortado relações e os 4 pneus, estes também de forma ritualizada.

a este episódio colou-se a apaixonada relação com a Madalena e o novelesco fim da relação com a Madalena, nunca mais conseguiu ter uma relação que lhe interessasse. teve várias, todas coxas à partida, todas impossíveis, experimentou tudo o que pudesse soar a imoralidade, adultério, clientes, chefes, triângulos amorosos, primas, praticamente experimentou a pedofilia. quando os amigos ultrapassavam o choque ou o choque deixava de ser o tema nuclear, perdia o interesse, rompia tudo, partia para a próxima barbaridade. confrontei-o com esse fascínio, com essa procura pelo impossível e o bárbaro, e disse que achava que esse conceito era galopante e que tendia para o abismo, mas não me lembro da resposta dele porque infelizmente estava completamente bêbado. resta-me no telemóvel uma estranha gravação em vídeo dessa conversa, debaixo de música dos santos populares, já na parte em que ele diz que está na hora de ir para casa. a única memória material que tenho da sua voz.

fui uma vez de férias com ele, sem destino traçado, apenas uma direcção genérica e o prazo francamente elástico que o emprego precário permite. era o início do verão, o sal e a confiança queimavam a pele de tal forma que apenas tínhamos que entrar no spot da moda para garantir indígenas deslumbradas e imprevisíveis ofertas de bebidas saloias de sílabas básicas. imprevisíveis porque estávamos concentrados em conversar e antes que reparássemos na fauna local, já estávamos na base da cadeia alimentar, precisamente porque estávamos indiferentes ao ecossistema. éramos verdadeiramente interessados em estar um com o outro, o pretexto da viagem servia para compensar os meses que passávamos sem nos falar em exclusivo. as horas de conversa que necessitam duas pessoas viciadas no argumento um do outro e que se gostam e que se entendem, são sempre insuficientes quando no fim do dia e da noite há casas diferentes onde regressar.

no regresso a Lisboa e a casa ele começou a andar com a minha ex-namorada.

perdoei-o, era este o poder argumentativo do Judas, depois de discussões intermináveis e de algum tempo de nojo. fizemos até uns programas a 4, e quando tudo estava bem, quando lhes abençoei a relação (e aqui admito o meu demérito, deve ser irritante receber a bênção paternalista do ex-namorado), ele terminou-a. já não chocava, já não interessava, decidiu vingar-se do meu paternalismo com esta humilhação da minha memória viva, ver a Sofia enxovalhada e a chorar por ele. um cabrão. ainda assim voltámos a ser amigos.

o culminar conhecido das suas experiências, do seu controverso conceito de amor, foi logo de seguida, viver com a mulher do seu melhor amigo do atelier, ao lado de quem trabalhava diariamente no Carrilho, com quem fazia directas, com quem bebia copos e festejava entregas bem sucedidas e primeiros prémios em concursos internacionais, de quem ouviu as mágoas em álcool e lágrimas quando a mulher pediu o divórcio ao fim de uma semana sem vir dormir a casa, por estar apaixonada por um desconhecido. viveu com ela o tempo suficiente para todos os amigos saberem disto, e os cornos do ignóbil ex-marido e amigo terem adquirido proporção mitológica. eu via este encornado como uma daquelas pessoas que têm um papel colado nas costas onde se lê "dá-me um chuto no cu", tinha uma pena profunda dele e ao mesmo tempo irritava-me tamanha cegueira e euforia bipolar pós divórcio, ele, bêbado, abraçado a um Judas desconfortavelmente sóbrio, a confessar-me "este gajo aqui é um senhor, um amigo, um arquitecto!". depois o Judas fartou-se da farsa e encornou-a, deixou-a em lágrimas e álcool.

tenho pensado então. creio que o vício de iniciar amores clandestinos o ajuda nas decisões de abandonar relações que ainda vão no adro. inicia-as sempre com grandes projecções de futuro, em que ele próprio não acredita. acabou por assumir o seu gosto por esses momentos de planeamento do presente disfarçados de projectos de vida. esse vício ajuda-o também a relativizar a moral, e ajuda-o a encontrar e esgrimir com confiança argumentos para explicar traições injustificáveis, mas essa confiança é a fórmula do seu sucesso argumentativo, não o raciocínio subjacente. é a confiança fraternal com que nos diz "eu sei, eu sei, tens toda a razão, é uma filha da putice, no teu lugar eu estaria todo fodido. mas tens que compreender que" tenho que compreender que ele não está no meu lugar.

é desse argumento que tenho saudades, dessa frontalidade desarmante, sem a boçalidade do bimbo que se arroga frontal, diz o que lhe apetece e assim justifica a bestialidade. não, é antes uma franqueza não ofensiva, não maldosa, não julgadora, de quem está ali para ouvir o seu próprio sacramento e perdoar-se perante nós. é inexplicável, mas eu admirava esse dom.

há cerca de dois anos decidiu afastar-se de mim definitivamente, num dos picos da nossa relação feita de reatamentos e tempos de luto. vínhamos num crescendo de auto-suficiência (a dois), o que para os homens não é como com as mulheres, necessitar apenas de um amigo para relatar todos os problemas do dia-a-dia. não é normal, é claustrofóbico. talvez eu próprio me tivesse tornado numa âncora emocional para ele, e ele tivesse procedido como normalmente, seguindo para a próxima. a quebra foi rápida, o quotidiano ajudou e deixou finalmente de me atender quando lhe disse que ia ser pai de uma menina, a Madalena, como a mãe.