branco frigorífico

chegou finalmente a casa, pousou as chaves na mesa do hall, despiu o casaco, pendurou-o, consigo vê-la daqui deste sofá. ela nem procura ver se eu estou na sala a olhar para ela, como costuma fazer. ignora-me completamente. passa na sala, diz-me olá ou diz olá para o ar, segue para a casa de banho. o tempo que lá demora parece-me uma eternidade, oiço o autoclismo, a torneira várias vezes, a porta do armário, calculo que saia já com a camisa de dormir. nem vai comer primeiro? e isto parece a torneira do bidé. porquê o bidé assim que chega a casa? demora mais um bocado, irrita-me esta demora, está a fazer de propósito. não entendo, chega a casa a esta hora, não avisa antes, não dá explicações depois. mas eu estava à espera disto, não estranho e não a vou chatear com uma coisa tão secundária. estamos há semanas nisto, hoje está pior. puxa outra vez o autoclismo. silêncio agora. então? oiço a porta abrir, quando chegar à sala não vou olhar para ela. vou esperar que ela fale comigo, me faça perguntas ou me dê alguma explicação. se me mantiver calado certamente ela vai precisar de quebrar o gelo, vai ficar irritada com o meu silêncio, provar do seu próprio remédio. este tratamento de facto aumenta os níveis de adrenalina de um morto. oiço outra porta a abrir, merda! foi para o quarto! não oiço nada daqui. o que é que ela está a fazer? que raiva. oiço uns murmúrios inidentificáveis. janela? telefone? televisão? temos televisão no quarto? não. deve ser telefone. a esta hora? penso em ir lá mas estou psicologicamente exausto e mais a raiva com o seu orgulho que não me deixam levantar para perceber o que se passa. prefiro evitar o ridículo de me aproximar e ela perceber que estou a tentar ouvi-la. tento distrair-me, esquecer o tempo a passar como um caracol, ver televisão, que é esta merda? pingo doce? que medo. está a sair, abre a porta do quarto, é agora? é agora. "estiveste ao telefone?" não consegui evitar, saltou-me do estômago. "não" "não? pareceu-me mesmo ter-te ouvido falar". não me respondeu. também não era bem uma pergunta, não posso censurá-la. não vem de camisa de dormir, vestiu uma t-shirt de alças branca e umas calças de fato de treino. apanhou o cabelo. descalça? está gira. puta. vai à cozinha, abre a porta do frigorífico e oiço mexer uns frascos e uns sacos. "eu fiz uma lasanha", grito-lhe "está no forno". "obrigada, não tenho fome" não tem fome mas está a preparar alguma coisa para comer. sempre pensei em fazer isto, estar em casa antes dela, fazer o jantar para mim e deixar o resto no forno à espera dela. sempre pensei e nunca o fiz, faço sempre uma sandes de pão de plástico, até hoje, e não foi este o resultado que imaginei. não vou lá dizer-lhe isso, é ridículo, uma humilhação completa e não é esse o âmago da questão. se é para falar fala-se do problema principal, do problema todo. está outra vez a demorar, já não consigo estar a ouvi-la sem a ver, começo a sentir umas desconfortáveis saudades dela, que estupidez. podia esquecer tudo por hoje, adiar a conversa para amanhã e passar esta noite enrolado a ela à frente da televisão e na cama, e quem sabe até pode haver sexo para fazer as pazes. não, ela nunca foi de sexo assim do nada. eu prevejo uma queca cá em casa com uma antecedência de vários dias, ultimamente semanas. além disso não posso ignorar o facto de ela ter chegado a esta hora sem qualquer justificação. vou à cozinha, preciso de vê-la. está sentada no chão ao pé do frigorífico a comer um iogurte. "então? no chão?" não me responde outra vez. "ouviste o que eu disse? o que é que se passa?" "ouvi, pensei que era uma pergunta retórica" sorri para mim, "e passa-se alguma coisa ou não?" "não, tudo normal" sorri formalmente e volta a olhar para baixo. eu posso ser estúpido mas não sou estúpido. ambos sabemos que se passa algo que é preciso esclarecer, mas já tentámos tantas vezes que ela diz já não aguentar mais esta conversa. e que merda é esta? sentada no chão da cozinha a ler um flyer da agência abreu? de alças e sem sutiã. nada típico. esta menina neat freak com esta máscara negligé. isto é para me provocar. e está a resultar. volta a saltar-me do fundo uma vontade de falar sem passar pelo cérebro. bom, "ouve, eu quero estar bem contigo, vamos esquecer isto. não estou chateado contigo, provavelmente tenho sido demasiado chato com coisas pouco importantes. se tenho sido chato é porque te adoro e às vezes preocupo-me demasiado. mas sei que és a mulher da minha vida e sabe-me bem dizer-te isto, de repente o resto é supérfluo" sorrio para ela, abandono-me, não pode correr mal se der parte fraca, mas se correr mal pelo menos fui honesto, é o que me vai na alma, não sei onde esta sensação estava escondida mas sabe mesmo bem dizê-la e pensá-la agora! é tão mais fácil ficar bem. é isto que é suposto acontecer entre dois seres humanos que decidiram juntar-se porque perceberam que se amam. é um cliché, mas é verdade. "ok zé, eu também não estou chateada. só tenho estado a pensar em muita coisa e preciso de mais algum tempo para perceber o que quero para mim e não tomar uma decisão irreflectida. quando eu conseguir falar falamos. ok?".