a dúvida

- olá!

- oi, então? - Júlio pousou as chaves na mesa da entrada, tirou o sobretudo ensopado, os sapatos alguidar - bela merda... - disse de braços abertos olhando para as calças que colavam às pernas, depois esfregou o cabelo vigorosamente para enaltecer a molha, como um cão de água sacudindo-se. olhou para ela e sorriu-se, passou-lhe a mão na cabeça como a uma criança, e deixou-a no meio do caminho, fã abismada.

- não é melhor tirares as calças também?

não lhe respondeu. fechou-se no quarto uns minutos e voltou já com umas calças secas e uma camisola de lã escura que lhe completava o círculo aberto das suíças. sentou-se no sofá em frente ao telejornal e soltou um longo suspiro de pessoa importante. olhou para ela, forçou o sorriso, depois sorriu sozinho por ter forçado o sorriso. Sofia seguia-lhe os movimentos como um perdigueiro. não estava bem. ela, isto é. não estava bem há muito tempo, mas um não estar bem que se aproximou sem se assumir, como as depressões pesadas. teve início quando ele deixou de se queixar de tudo e se tornou num marido não exemplar mas de bom humor, definitivamente um bom humor cínico, que mudara o ponto de equilíbrio das coisas todas.

numa festa conversavam separadamente. ela cão pastor, ele jacarandá. ela observava-o ao longe em conversa animada com uma gaja de saia por quem os homens ajavardavam em conivência de género mas baixavam a bola presencialmente, fera. o interlocutor de Sofia, um rapaz de óculos extremamente cultos, já tinha percebido que estava a falar sozinho, mas continuava a sorrir socializante, como lera num livro. Sofia fartou-se.
- vou buscar mais uma marguerita, queres alguma coisa?
- ah nããão,  hehe, obrigado, já bebi duas - dizia enquanto se calava.

este amputado social fazia-a lembrar os tempos de universidade, os primeiros  jantares de turma. já no segundo ano o Júlio que veio de bicicleta para um jantar, deixou-as a todas arqueadas e sem guarda. tinha estilo o cabrão, bem vestido, cachecol de meados do século, sentado no seu brooks, honey. no restaurante fez logo à porta amizade com o pintarolas que angariava clientes e que lhe guardou solícito a bicicleta durante o jantar. Júlio tinha o dom social da palavra e do protagonismo. agora Sofia vivia entre a nostalgia da admiração pueril que sentira por este bon vivant intelectual que demorou a domar, com um estilo de vida a que não voltava por orgulho (women can't go back in lifestyle), e o sentimento de possuir a pessoa que vive consigo e que foi revelando imperfeições recorrentes e incorrigíveis. "já não o amo, não consigo" não encontrava forças para reinventar a sua perspectiva do homem que tinha. não, nem entendia porque tinha que o fazer. esse processo não a excitava. a razão da relação eram agora os pequenos nadas circunstanciais. na verdade os sentimentos recentes eram ciúme puro, sem qualquer sentimento nobre associado, ciúmes da independência do outro. mas cresceram ao ponto paradoxal de não entender o patamar anterior, o da libertação quase consumada. como se as antigas paralelas pudessem simultaneamente divergir e convergir ao mesmo tempo.

- já conhecias aquela miúda?
- quem, a Bárbara? sim, é uma amiga do Estêvão.
- ah conhecias? há muito tempo?
- sim, antes de estar contigo.
- conheceste quando estavas solteiro?
- hmm sim.. por acaso sim.
- e tiveste alguma coisa com ela?
- não.
nunca diria que sim. mas dizendo que não, lançava na mesa a alta probabilidade de estar apenas a tentar esconder uma proximidade adquirida e nesse caso uma intenção futura.
- estás a pensar ter?
- epá, olha, ainda há rolo de carne de ontem? estou com fome.
desprezada depois de dar parte fraca bateu com a porta, ele ignorou também isso. era óbvio que a vida agora era cínica.

se dele deixara de haver intransigências diárias, as poucas que havia eram agora levadas até ao fim, diplomáticas, indiferentes ao choro dela a que acudia esporadicamente enfastiado, como aos filhos em idade de ouvir nãos. passou também ele a ignorar perguntas descabidas, deixou de responder que não, não seria assim, mesmo quando não seria. deixava-a na dúvida quando ao resultado da sondagem que acabara de acontecer. dúbio, sempre. para a Sofia a verdade tem que ser aquilo que ela conhece. o controlo dos acontecimentos é determinante para a paz de espírito. que é como quem diz, o controlo das pessoas.

- estás chateado comigo?
- eu? tenho lá razões para isso minha querida? - não tirava os olhos do forno, lá dentro a carne assava a 220 graus, cá fora petiscava-se insegurança com endívias, um canapé que não ficou admirável - estou a brincar oh baby! não estou nada chateado, porque dizes isso?
- por nada, estou a precisar de um abraço - e roubou-lhe um abraço forte, encostando-se de braços ao peito contra o peito dele. o abraço foi paternal mas curto. Sofia viu-o voltar distante para o seu forno, deixou-o a custo na cozinha. um nó no peito disse-lhe "está tudo bem agora, podes ir". foi descansada. voltou a aparecer à porta:

- hã?
- hmm?
- disseste alguma coisa?
- não.