o big bang

quem és, onde estás e o que fazes aqui, podias perguntar-me se soubesses dizer os érres. eu também não sei. mas devia saber responder-te. eu não sei o que eu próprio aqui faço. conheço-me apenas medianamente. nem sei bem onde estamos. algures na via láctea, esse último bairro classificável antes do desconhecido, mas a via láctea não é uma área facilmente localizável. enfim, talvez seja localizável, mas em relação a quê? esquece, nem sabes o que é o desconhecido. o nosso tamanho relativiza a nossa localização, estamos sempre em casa. não sabes a nossa espécie, não sabes que tens mãos mas seguras-te ao meu dedo como a uma bóia salva-vidas desde esse naufrágio inverso. não sabes que tens quem te ame, mas sorris-me quando me reconheces na miríade de familiares que te sorriem e te apalpam perversamente enquanto outros te pegam ao colo nas últimas três horas e meia, como num bacanal de pedófilos com etiqueta.

o teu cérebro está pronto para tudo, virgem, podes vir a ser um astronauta ou um filho da puta. mas serás o meu filho da puta. é fácil dizê-lo porque ainda não o és nem perspectivo que venhas a ser, não pode ser difícil evitar que sejas alguém que desconheço. porque comunicamos. o teu cérebro não processa o conceito de linguagem, não me diferencias do meu gato em comunicação verbal. mas entendes quando te seguro ao colo se berras bestialmente que isso significa que é inevitável para mim fazê-lo. por mais que tudo o resto seja sugado para dentro desse hiato em que te fizeste. precisamente porque dependo agora mais de ti que tu de mim.

irmã, Lúcia

cheguei à esquina da rua do J e dei-lhe um toque para o telemóvel para descer. fiquei na D. Carlos, não gosto de ir até à porta dele, tenho sempre medo de encontrar a Lúcia, talvez porque a encontro sempre que me aproximo dali. tive há uns meses um fling com ela e desde que tivemos sexo perdi o interesse, para variar. o J apareceu e pela décima vez perguntou-me "porque é que não foste até ali? fui à janela e não te vi."
- porque não quero encontrar a Lúcia, tenho que explicar sempre que aqui venho?
- epá, ainda com essa merda. tenho-a visto com um amigo novo, já deve ter cagado para ti. vamos onde?
- tens visto? mas a entrar para casa dela?
- vi-os uma vez à porta do prédio, não sei se iam a sair ou a entrar. ou se estavam só ali. eu ia a sair. onde é que vamos?
- vamos ali ao pontão. mas viste-os mais que uma vez?
- caga lá na miúda, não andavas a evitá-la? vamos ao pontão fazer o quê? fumar uma? não tenho nada. queres passar no russo?
- não, deixei de fumar. brocas também. vamos só ali passear.
- ah passear, tão querido, como dois marinheiros apaichenados?
- não pá, queria falar contigo. mas diz-me lá viste-a mais que uma vez ou não?
- sim, vi várias vezes, uma delas ele tinha a mão no rabo dela. por isso não há dúvidas que há ali palhaçada. e da grossa, se é isso que queres saber.
- és mesmo besta. não.. quer dizer, sim, mas não é isso que me interessa, era só para saber se é uma cena séria.

J parou e olhou-me de frente.
- epá, explica lá isso bem, mas tu estás interessado na Lúcia ou não? pedi-te para não te meteres com ela, tinhas que fazer merda, e depois cagaste nela como é teu apanágio, agora não deixas a miúda continuar a vida dela?
- estás armado em vizinho galinha? tenho simplesmente um interesse especial por raparigas com quem tive uma proximidade deste género. saber se estão bem, curiosidades. nada mais.
- está bem, deve ser isso... faz o que quiseres, chapinha no teu próprio esterco. mas tenta não sujar toda a gente à tua volta. e o que é que querias falar comigo?

andámos mais um bocado, atravessámos a nova ponte pedonal sobre a 24 de Julho, a que sai em frente ao novo pontão que acaba num canteiro gigante dentro do rio, com árvores raquíticas que quando crescerem hão-de ficar muito bonitas, cheias de salitre e dar flores roxas que sujarão a calçada portuguesa com que algum génio se lembrou de calcetar a margem. vai dar uma óptima sopa de pedra quando vierem as marés vivas.

- acho que tenho cancro no testículo.
- o quê? no testículo?? só tens um?!
- pára lá de gozar, estou preocupado com isto. está um maior que o outro.
- isso pode ser cancro ou roubo. está um a roubar o outro.
- foda-se! para a próxima vou falar com o Manel. estou todo fodido com isto e tu estás a dar baile.
- não, só acho que andas hipocondríaco. devias era ir ver isso. eu não te vou apalpar os testículos, podes ter a certeza.
- achas que vá a um médico?
- não, a um veterinário.
- merda pá, estás impossível.

estava impossível, estranhamente sarcástico, sem o mínimo arrependimento de me estar a irritar, aliás, parecia estar só a pensar como me irritar mais.

- está tudo bem? - perguntei.
- sim. está tudo óptimo. pelo menos não tenho cancro.
.........
- tu gostas da Lúcia?
- eu, estás parvo? conheço-a desde pitinha.
- e então?
- e então nada, é tipo irmã, que estupidez de conversa é essa?
.........
- ok, então desculpa lá, eu é que ando preocupado com isto e ando um bocado irascível.
- também me parece. é porque deixaste de fumar? e que merda é essa, deixaste de fumar? tu nunca fumaste a sério.
- lá estás tu, que merda de conversa, tu é que és o grande fumador de Lisboa. os outros são amadores. deixei de fumar porque posso ter cancro no testículo.
- e tu fumas com os testículos? és claramente amador.
- sei lá, essas merdas podem estar todas relacionadas. é como o IRS e a Seg. Social. um gajo não arrisca.
- sabes o que é que está relacionado? doenças venéreas e não usar preservativo.
- ??
- sim, ela contou-me.
- a Lúcia?!
- claro.
- mas porque é que ela anda a falar disso contigo?? andas a comê-la? palhaço, todo moralista para mim. ahah.
- não ando a comê-la, não. há relações entre homens e mulheres sem ser a foder. estava preocupada com isso e veio perguntar-me pela tua vida "amorosa".
- e o que é que disseste?
- disse que não amavas ninguém. só fodias.
- ahah, estás armado em Florbela Espanca? não me lembro desses sentimentos honestos quando andaste a perseguir a minha irmã até ela te enfiar lá no quarto e depois desapareceres durante um ano.

o J ficou envergonhado mas raivoso. fica sempre, quando jogo o trunfo.

- então não me chateies mais com o teu colhão.