- quando é o nosso aniversário?
Júlia mexe a colher no café procurando disfarçar o interesse da pergunta, o sorriso admite-o.
- sei lá. diz-me tu.
- dia dos namorados, 14 de Fevereiro?
- que patetice, esse foi o dia em que saíste de casa da Sofia, fomos só tomar café.
- eu sei, mas então? em que dia foi? foi no sábado seguinte, dia 17? é o sexo que marca o início da relação?
- sim, e depois andaste na cama com 50 mulheres até ao Natal. iniciaste 50 relações diferentes.
- foram só 30. e tu, estiveste com quantos homens?
- nenhum.
- mentirosa. estiveste pelo menos com aquele Rogério da pila grande.
- que ridículo. não estive nada com ele, só fomos tomar café umas vezes apesar dele ter tentado reatar coisas antigas. e fui tomar café porque tu andavas a dar-me para trás e fazias-me sentir uma merda. ele apanhava-me no facebook e andava ali a insistir até eu aceitar. sentia-me com baixa auto-estima, precisava de me sentir desejada. não gosto nada de me lembrar disso, de me ter exposto a ele nessa altura.
- porquê?
- porquê o quê?
- porque é que não gostas de te teres exposto, se foste mesmo só tomar café não entendo em que foi que te expuseste, se já tinhas estado com ele na cama antes e ele voltou a querer estar contigo até é bom sinal. geralmente depois do sexo os homens perdem a ansiedade, se realmente só estiverem interessados em levar-te para a cama.
- pois, se calhar foi por isso que perdeste o interesse em mim depois de 17 de Fevereiro.
- não perdi nada. não estou aqui a tomar o pequeno almoço, 8 anos depois?
- fiz um esforço épico para te conquistar durante esse ano.
- e passaste os 7 anos seguintes a descansar sobre os louros.
- vamos discutir?
- não, estou a brincar. 17 de Fevereiro é uma data estúpida, eu ainda não tinha ultrapassado a Sofia, por isso é que não quis agarrar-me a ti, sabes isso.
- mas também não me soltavas.
- isso é bom sinal, já te disse. e também já te disse que ainda aqui estou.
- então e quando é o nosso aniversário? 26 de Dezembro?
- acho que isso também é desprezar todo esse ano, ainda fizemos boas memórias.
- entre essas memórias contam-se as 70 mulheres com quem estiveste.
- foram só três ou quatro, ou 5. e são boas memórias para mim, sim, mas tu tens o teu próprio percurso gravado na minha cabeça.
- oh, que orgulho. tens pistas de corrida gravadas na cabeça e eu fui a mais rápida a cruzar a meta.
- mais rápida não, és uma corredora de fundo. foste a mais resistente.
- essa merda soa pessimamente.
- pois soa, mas o que quero dizer é que foi a ti que eu escolhi para chegar ao fim.
- ainda estamos longe do fim, não te entusiasmes.
Júlia mexe a colher na chávena vazia tentando apanhar a espuma que resta do café, procura disfarçar o orgulho em puxar incessantemente o tapete da sua felicidade ao pai dos seus filhos.
- o dia do meu aniversário foi um dia bom, depois dos santos fomos para tua casa e quando acordámos deste-me um cabaz de brinquedos e rifas de vales personalizados de massagens e jantares que nunca cumpriste.
- nesse dia desapareceste a meio da tua festa com uma miúda qualquer e apareceste horas depois com cara de ter tido sexo, para ir dormir quentinho a minha casa.
- tu tens memórias péssimas de mim. só ficaste comigo porque fui difícil de agarrar? eu tenho boas memórias tuas.
- pois tens, eu só proporciono boas memórias. a todos os homens.
- sabes aquela minha amiga que teve uma paixão na adolescência por um gajo popular lá da escola dela, uma paixão que durou anos e cuja memória se manteve pela maioridade, alimentada pelos fugazes contactos que ela conseguiu forçar nesses anos... e aos 30 anos ele reapareceu... gordo, meio careca, ligeiramente alcoólico, ligeiramente desempregado, inteiramente idiota, pretensioso e falhado, e muito mais disponível para ela, como seria de esperar, e ela vive com ele há 3 anos de martírio não declarado e impaciente?
- sei.
- podias ter-me interrompido. bom, achas que da perspectiva dela ele é a mesma pessoa? claro que não. achas que a memória que ela tem do tempo em que o amava ao longe se impõe como a figura da pessoa com quem vive agora? achas que ela sente a obrigação de aproveitar esta dádiva de Deus que foi o regresso de quem a fez sofrer durante tanto tempo por desinteresse? que ela ama o mito que criou numa idade em que a memória é gravada em fogo, e não o homem por trás do mito? é que por vezes sinto-me um gajo gordo, careca, falhado, sombra do que fui ou do que projectaste em mim, de quem tu só retiras a memória do que te custou adquirir, e que simplesmente não queres passar novamente com outra pessoa por tudo o que passaste para chegar a mim. como se tu não quisesses perder a relação, o estatuto, a memória, e não a pessoa.
- acho que és parvo. a minha relação contigo não tem nada a ver com essa. a tua amiga gosta do namorado, seja porque razão for, mesmo que esteja iludida acerca dele. eu tenho raiva de ti, muita, por várias razões. mas és meu, amo-te.
- ahahah, até foste buscar essa palavra maldita! parece que estou a assistir uma telenovela portuguesa, nem te sai bem dos lábios essa merda.
- ahahah, quando eu a digo tu gozas comigo, vês? é por isso que eu não digo estas coisas.
- foi querido. até o facto de teres admitido que tens raiva de mim. adoro-te, deixa-me manter na memória institucional a nossa relação inteira: 10 de Janeiro, quando dançámos kizomba nos teus anos.
- que parvoíce, ainda vivias com a Sofia.
- eu sei, mas foi a dançar abraçado a ti, juro, que decidi que queria ter filhos contigo.
Júlia perde momentaneamente a noção da coordenação motora e agarra com os dedos todos a colher suja de café, deixando-se invadir pela nostalgia, rara em si, mas violenta e feliz quando envolve os actos de amor na origem dos miúdos.
- que estupidez. vou tomar banho.
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