as pequenas mortes

a Júlia fechava o bar e ficávamos todos lá dentro, muito bêbados, enquanto ela contava o dinheiro da caixa. a confiança entre o grupo era de tal forma, confiança cega de pessoas da noite que acham que encontraram as almas gémeas no fundo de copos de wishkey e cerveja, que por vezes as contas não batiam certas e todos queriam contar o dinheiro, e ela deixava. o primeiro que contasse mais dinheiro do que era suposto haver, fechavam-se as contas, e prosseguia-se noite fora a tirar imperiais, a fazer tostas mistas, linhas de coca, teorias da conspiração e da relação conjugal, etc.

por volta desta hora (três, quatro), com a porta do bar fechada, todos os casais se desfaziam e acabávamos todos em conversas privadas com a namorada do próximo, geralmente de entrosamento facilitado. e a piada era essa, não haver pinga de adultério ali, apesar de todas as bocas trocadas em conferência aberta escorregarem para o facilitismo da piada swing. disse-me o Pedro certa vez enquanto eu fazia uma massagem nos pés da Sofia para ir com ele à casa de banho, se a minha pila não fosse muito maior que a dele, que tinha o seu aval para levar a Sofia a dar uma volta. era uma piada, disse-o e repetiu noutras ocasiões para toda a gente se rir, mas em privado diria a mesma coisa, sobretudo porque ele queria comer a Júlia desde que eu me lembro.

havia um entendimento tácito de que tínhamos que ter cuidado, alguns do grupo eram mais constantes, eu e a Júlia, o Pedro e a Sofia, o Manuel e a Rita, se estávamos só nós as conversas eram mais ordinárias mas com o day after mais presente. mas se por acaso havia alguém solteiro, se valesse a pena e era raro deixar alguém lá ficar que não valesse a pena, era todo um bando de papagaios para um estendal curtinho. foi numa dessas ocasiões que conhecemos a Jessica, uma loira de cabelo solto, surpreendentemente inteligente e de ironia fina (finíssima pá), de sorriso aberto e gargalhada genuína. era aspirante a actriz, na época da goldrush televisiva.

por sorte minha, a Júlia era afoita e viciada em fazer toda a gente gostar dela, cedo descobriram afinidades femininas e passavam noites a fim a gozar com os homens em geral, comigo em particular. a Jessica engraçava comigo também, notava-se na forma como me picava com desgarradas libertinas acerca da minha fraca virilidade, acompanhadas de sorrisos, que interpretava como "quero-te comer enquanto a tua namorada observa".

uma famigerada noite que começou com o aniversário de alguém e que trouxe muita gente nova ao fecho privado do bar, a Jessica foi elevada a habitué por contraste, passou para trás do balcão, ajudou nos shots e imperiais e embebedou-se terrivelmente com a Júlia, a ponto de o Pedro me vir buscar à mesa quando eu conversava com duas dinamarquesas não me lembro em que língua, para ir ver o que se estava a passar: Júlia e Jéssica aos melos na cozinha. Pedro pôs-me a mão no ombro e disse-me sentidamente "cabrão".

saímos da cozinha desorientados, tirei um cigarro, naquela altura fumava quando não sabia o que fazer, e o Pedro perguntou-me se não queria antes ir com ele à casa de banho dar uma linha. fomos à casa de banho mas não dei linha nenhuma, não queria gerir aquilo com a impetuosidade da coca. "leva-me contigo" disse-me o Pedro "podes foder a Sofia sempre que quiseres, ou melhor sempre que ela quiser", mais um golpe de barro à parede do nosso amigo nocturno que tranquilamente me veria em cima da namorada, mesmo que não pudesse comer a Júlia, desde que o mundo pudesse ser lindo como sempre foi, e ele pudesse acreditar que seríamos sempre amigos, e o cor de rosa fosse a cor do negócio dos bares. eu também queria acreditar que seríamos sempre amigos, mas geralmente não conseguia encarar aquelas pessoas à luz do dia, o que dificulta uma amizade ortodoxa.

saímos da casa de banho e já só o núcleo duro restava, Jessica e Júlia tinham saído do recontro da cozinha, e agora mais calmas com a língua, mas mais agarradas ao rabo uma da outra e em performance teatral para os nossos amigos, começaram a planear matar-me. morte por sexo foi a escolha óbvia, mas antes Lux, uma decisão que eu não entendia, porquê Lux?, vamos só perder tempo, a noite está decidida, quero morrer depressa.

Pedro, Sofia, Rita e Manuel, enterneciam-se com o nosso three-way porvir, eles mais que elas, sugeriu-se um bacanal mas Júlia e Jessica não estavam para me partilhar com homens. notei alguma satisfação entre eles que eu não fosse já para casa com elas, adiando a certeza dessa inveja que sentiam. íamos ao Lux então, últimos xixis, e pela primeira vez pude perguntar à Júlia sem palavras se aquilo era mesmo para ir para frente. "acho que sim" disse-me, "sabia que ias adorar". estávamos os dois agarrados aos beijos quando a Jessica se aproximou, agarrámo-nos os 3 e beijámo-nos os 3, com os holofotes acesos sobre o meu beijo com a Jessica. só o Pedro viu e agarrou-nos também, a velha piada do empata-fodas, resulta sempre.

com a confusão de fechar o bar, com Pedro e Manuel ansiosos como miúdos para me fazer perguntas, dar sugestões, fazerem-se convidados, as miúdas foram todas juntas de táxi antes de nós, e eu só pensava que ainda me ia fugir tudo das mãos, bastava que embebidos em álcool como todos estávamos alguém perdesse tempo desnecessário a falar com um amigo chato, a discutir com um taxista, à espera na fila do multibanco, para o clima e os caminhos se descruzarem ou as linhas do destino sexual, pelo contrário, se emaranharem por completo e eu acabar no Lux a conversar com um indiano que vive em Chicago e que está cá a fazer um doutoramento numa cena desinteressante ligada à criação de perus.

à porta contudo, o Miguel cumprimentou-nos espirituoso "boa noite, as suas duas esposas já entraram" sorriu, e rimos todos muito, porque era o Miguel que nos dirigia a palavra, eu ri mais que os outros por confirmar que estava tudo sobre carris. entrámos, era daquelas noites em que parecia que havia ecstasy no ar condicionado. logo no bengaleiro encontrei a Mia, óptima, uma ex-relação mal terminada, a conversa correu lindamente para tantos anos de frieza protocolar. estava divertida, disse que eu estava giro, acariciou-me o braço de alto a baixo, perguntou se ainda estava com a Júlia, quando o confirmei fez um ar desiludido de sorriso pornográfico, pronto, estava completamente bêbada, mas bêbada conta. a minha hiperconfiança acumulada até aí facilitou-me a despedida. enquanto o Manuel encontrou a Rita, o Pedro e eu fomos procurar as dissidentes, primeiro no andar de baixo, no estado em que estavam era de prever que estivessem a dançar nesta selva. não estavam. encontrámos dois amigos do Pedro, um deles tinha visto as miúdas no andar de cima e perguntava-lhe quem eram as duas amigas da Sofia, estava doido e o Pedro disse-lhe "têm namorado". subimos, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei um camelo, pelo caminho encontrei, pelo caminho encontrei, depois três gays nas escadas pararam-me, olhos muito abertos "ai filha!" perguntaram o que usava para ter aquele bronze, "melanina", um deles não riu. eu era o rei, furava pela multidão com olhos postos em mim, daquelas noites em que Deus me pintou de dourado e tenho a certeza que vou acabar na cama, eventualmente sozinho.

o Pedro queria ir outra vez dar na coca, esperei por ele à porta da casa de banho, tenho ideia que a minha vida nocturna foi muito passada à porta de casas de banho. apareceu a Marta que recolhia copos, fez a festa da nossa relação nunca consumada "Zé!" abraçou-me com o braço que não tinha bandeja, e os seus beijos lambidos soaram-me melhor que nas outras vezes, "a Júlia está ali com a Jessica, ao pé da varanda, estava a dizer-me que estava só à tua espera para irem embora". óptimo! havia uma máquina de preservativos nova na entrada da casa de banho, coisa em que nunca antes tinha reparado, nem voltei a ver ali depois. interpretei aquilo como um sinal, optei por abastecer-me, em casa não havia nenhum dentro do prazo, só uns apertadíssimos que me deram na rua, certamente sobras do mercado asiático ou modelos para distribuir nas escolas primárias, a Jessica podia não achar piada à minha facilidade em ignorar regras básicas de sobrevivência. que digo? a Júlia é que podia não achar piada. havia 3 tipos de preservativos em duas quantidades, escolhi uma caixa de 3 preservativos de sabor a mentol, porque pensei bêbado que o mentol era melhor para desenjoar do álcool e porque éramos 3. foi um raciocínio infeliz, fruto da pressão das circunstâncias.

o Pedro saiu da casa de banho, encontrámos imediatamente a Sofia "Zé, a Jessica está um bocado mal" o quê? não quis entender à primeira, falávamos aos ouvidos uns dos outros por causa da música para demolir edifícios, quando percebi não quis acreditar que ela estivesse assim tão mal, mas chegámos perto da varanda e Jessica tinha a testa pousada na mesa, já tinha ido vomitar várias vezes e não queria que lhe tocassem. era a primeira grande bebedeira da sua vida, dizia ocasionalmente. Júlia amparava-a e olhava para mim "olha menino, kapputt!", estava mais preocupada que desiludida. "água" disse eu ao ouvido da Jessica "bebe água, muita água, isso vai passar" num esforço patético para endireitar a minha vida.

a Jessica veio dormir a nossa casa, completamente derrotada, deitámo-la no sofá. Júlia deixou-me assistir enquanto a despia e a Jessica murmurava "perdoem-me! que vergonha! podem fazer de mim o que quiserem desde que não me abanem muito", eu fui buscar um cobertor para se tapar e um balde que coloquei aos pés do sofá "Jessy, está aqui se te sentires mal". agradeceu-me imenso.

2007, hoje

- quando é o nosso aniversário?

Júlia mexe a colher no café procurando disfarçar o interesse da pergunta, o sorriso admite-o.
- sei lá. diz-me tu.
- dia dos namorados, 14 de Fevereiro?
- que patetice, esse foi o dia em que saíste de casa da Sofia, fomos só tomar café.
- eu sei, mas então? em que dia foi? foi no sábado seguinte, dia 17? é o sexo que marca o início da relação?
- sim, e depois andaste na cama com 50 mulheres até ao Natal. iniciaste 50 relações diferentes.
- foram só 30. e tu, estiveste com quantos homens?
- nenhum.
- mentirosa. estiveste pelo menos com aquele Rogério da pila grande.
- que ridículo. não estive nada com ele, só fomos tomar café umas vezes apesar dele ter tentado reatar coisas antigas. e fui tomar café porque tu andavas a dar-me para trás e fazias-me sentir uma merda. ele apanhava-me no facebook e andava ali a insistir até eu aceitar. sentia-me com baixa auto-estima, precisava de me sentir desejada. não gosto nada de me lembrar disso, de me ter exposto a ele nessa altura.
- porquê?
- porquê o quê?
- porque é que não gostas de te teres exposto, se foste mesmo só tomar café não entendo em que foi que te expuseste, se já tinhas estado com ele na cama antes e ele voltou a querer estar contigo até é bom sinal. geralmente depois do sexo os homens perdem a ansiedade, se realmente só estiverem interessados em levar-te para a cama.
- pois, se calhar foi por isso que perdeste o interesse em mim depois de 17 de Fevereiro.
- não perdi nada. não estou aqui a tomar o pequeno almoço, 8 anos depois?
- fiz um esforço épico para te conquistar durante esse ano.
- e passaste os 7 anos seguintes a descansar sobre os louros.
- vamos discutir?
- não, estou a brincar. 17 de Fevereiro é uma data estúpida, eu ainda não tinha ultrapassado a Sofia, por isso é que não quis agarrar-me a ti, sabes isso.
- mas também não me soltavas.
- isso é bom sinal, já te disse. e também já te disse que ainda aqui estou.
- então e quando é o nosso aniversário? 26 de Dezembro?
- acho que isso também é desprezar todo esse ano, ainda fizemos boas memórias.
- entre essas memórias contam-se as 70 mulheres com quem estiveste.
- foram só três ou quatro, ou 5. e são boas memórias para mim, sim, mas tu tens o teu próprio percurso gravado na minha cabeça.
- oh, que orgulho. tens pistas de corrida gravadas na cabeça e eu fui a mais rápida a cruzar a meta.
- mais rápida não, és uma corredora de fundo. foste a mais resistente.
- essa merda soa pessimamente.
- pois soa, mas o que quero dizer é que foi a ti que eu escolhi para chegar ao fim.
- ainda estamos longe do fim, não te entusiasmes.

Júlia mexe a colher na chávena vazia tentando apanhar a espuma que resta do café, procura disfarçar o orgulho em puxar incessantemente o tapete da sua felicidade ao pai dos seus filhos.
- o dia do meu aniversário foi um dia bom, depois dos santos fomos para tua casa e quando acordámos deste-me um cabaz de brinquedos e rifas de vales personalizados de massagens e jantares que nunca cumpriste.
- nesse dia desapareceste a meio da tua festa com uma miúda qualquer e apareceste horas depois com cara de ter tido sexo, para ir dormir quentinho a minha casa.
- tu tens memórias péssimas de mim. só ficaste comigo porque fui difícil de agarrar? eu tenho boas memórias tuas.
- pois tens, eu só proporciono boas memórias. a todos os homens.
- sabes aquela minha amiga que teve uma paixão na adolescência por um gajo popular lá da escola dela, uma paixão que durou anos e cuja memória se manteve pela maioridade, alimentada pelos fugazes contactos que ela conseguiu forçar nesses anos... e aos 30 anos ele reapareceu... gordo, meio careca, ligeiramente alcoólico, ligeiramente desempregado, inteiramente idiota, pretensioso e falhado, e muito mais disponível para ela, como seria de esperar, e ela vive com ele há 3 anos de martírio não declarado e impaciente?
- sei.
- podias ter-me interrompido. bom, achas que da perspectiva dela ele é a mesma pessoa? claro que não. achas que a memória que ela tem do tempo em que o amava ao longe se impõe como a figura da pessoa com quem vive agora? achas que ela sente a obrigação de aproveitar esta dádiva de Deus que foi o regresso de quem a fez sofrer durante tanto tempo por desinteresse? que ela ama o mito que criou numa idade em que a memória é gravada em fogo, e não o homem por trás do mito? é que por vezes sinto-me um gajo gordo, careca, falhado, sombra do que fui ou do que projectaste em mim, de quem tu só retiras a memória do que te custou adquirir, e que simplesmente não queres passar novamente com outra pessoa por tudo o que passaste para chegar a mim. como se tu não quisesses perder a relação, o estatuto, a memória, e não a pessoa.
- acho que és parvo. a minha relação contigo não tem nada a ver com essa. a tua amiga gosta do namorado, seja porque razão for, mesmo que esteja iludida acerca dele. eu tenho raiva de ti, muita, por várias razões. mas és meu, amo-te.
- ahahah, até foste buscar essa palavra maldita! parece que estou a assistir uma telenovela portuguesa, nem te sai bem dos lábios essa merda.
- ahahah, quando eu a digo tu gozas comigo, vês? é por isso que eu não digo estas coisas.
- foi querido. até o facto de teres admitido que tens raiva de mim. adoro-te, deixa-me manter na memória institucional a nossa relação inteira: 10 de Janeiro, quando dançámos kizomba nos teus anos.
- que parvoíce, ainda vivias com a Sofia.
- eu sei, mas foi a dançar abraçado a ti, juro, que decidi que queria ter filhos contigo.

Júlia perde momentaneamente a noção da coordenação motora e agarra com os dedos todos a colher suja de café, deixando-se invadir pela nostalgia, rara em si, mas violenta e feliz quando envolve os actos de amor na origem dos miúdos.
- que estupidez. vou tomar banho.

Perpétua

- pronto, eu vou para a sala agora, está bem? dorme, dá-me um beijinho.
- pai.
- diz.
- o avô da Sara morreu.
- ... foda-se.
- foi para o céu, e não volta nunca nunca nunca nunca mais.
- foi? pois. já devia ser muito velhinho.
- pois era, e ele magoou-se num pé e depois morreu. agora ele é uma estrela.
- uma estrela. claro, é uma estrela.
- quando eu morrer vou ser uma estrela?
- ah, não penses agora nisso, ainda faltam muitos anos.
- faltam muitos anos?
- sim.
- quantos?
- muitos.
- quando eu for muito velhinho?
- sim.
- quantos anos tinha o avô da sara?
- não sei, tinha mais que muitos.
- quantos anos tens tu?
- 37.
- eu também vou ter 37 anos?
- sim.
- quantos anos tem o avô Pedro?
- 70.
- o avô Pedro é muito velhinho.
- nada disso, está agora a sair da puberdade.
- mas ele disse que era.
- ele estava a torturar-te psicologicamente.
- quando eu tiver 37 anos quantos anos tu vais ter?
- 70.
- como o avô Pedro. e quando eu tiver 70 anos quantos anos vais ter?
- 115.
- e quando eu tiver 115 anos quantos tu vais ter?
- 164.
- e quando eu tiver 164 anos quantos anos tu vais ter?
- vou ter muitos, falta muito tempo Henrique, não penses nisso.
- e quando eu tiver 164 anos o avô Pedro vai morrer?
- filho, ainda faltam muitos anos, não penses nisso.
- eu não quero que tu morras.
- Henrique, eu nunca vou morrer.

Faixa de Möbius

A luz do sol entra por qualquer buraco, tem calor próprio, mesmo que concentrado numa porra de 5 cm quadrados. Se toca numa têmpora, sobretudo numa têmpora transpirada de álcool em excesso e pressionada por dentro pela consequente bomba cefálica que só por si impediria a merecida inconsciência por mais que 4 horas seguidas, proporciona um acordar lento e penoso. Adão esqueceu-se de fechar o estore. O quarto a nascente, adivinhe-se, nasceu virado para o sol, que não perdoa uma fífia para brilhar de manhã aqui dentro. Adão não nasceu neste quarto, mas doeu-lhe menos o nascimento que o acordar todos os dias.

Hálito de lamber corrimões, língua de vaca fumada, olhos de recém nascido, e torcicolo, todos companheiros de lençol molhado. A Eva já saiu de casa, fugiu do toque dele, levanta-se sempre mais cedo, sobretudo quando Adão se mija na cama.

Cigarro à boca, um resto de cerveja num copo na cozinha (tinha um bocado de cinza, mas só eu é que vi), senta-se na sanita a fumar e a cagar depois de ter vagueado à procura de não sei bem o quê pela casa alva. Duche com ele. Meia hora. De água a ferver, a lavar os pecados e os testículos.

A casa de banho é um salão, diz-se que foi uma biblioteca medieval, ao sair do banho Adão pára em frente ao espelho e observa a barba, tem um dia, mas é mal semeada porque Deus odeia-o. Máquina de barbear, não arrisca a lâmina, isto implica 5o'clock shadow logo de manhã. Looking sharp!

Ligou para o escritório.
- Adão, conta.
- Miguel, vou chegar um bocado atrasado. A Eva saiu de casa e deixou-me aqui trancado, estou há uma hora à procura da chave, mas ela deve ter levado e não atende o telefone.
- Ok Adão. Até já. Olha.
- Diz.
- Bebe água. E vai comer qualquer coisa antes de vires que estás com uma voz de quem acabou de comer um cagalhão.
- Foda-se..??

Miguel já tinha desligado o telefone. Como ousa?! Como ousa Miguel sugerir que Adão estava de ressaca? Que lhe estava a dar uma desculpa? Como ousa Miguel pensar? Adão perde-se logo de manhã na raiva que sente de o mundo ter dificuldades em adaptar-se a si, mas hoje menos obsessivamente, que a dor de cabeça lateja forte. "Um palhaço este Miguel" pensou, "está a ver se me fode, que cena feia, tss" abana a cabeça em desaprovação profunda, de desilusão paternal. "Qualquer dia fodo-o".

Ainda nu procura vestígios da noite passada no telemóvel. Dois telefonemas para a Margarida, zero minutos (não atendeu? ainda bem), outros dois para o Bernardo, um para a Sara, 14 minutos e 23 segundos. Foda-se, não. O horror instala-se quase ao mesmo tempo que a cobardia e decide esquecer que viu este registo. Não decide, esquece-se simplesmente enquanto pensa em masturbar-se antes de ir trabalhar. "Cabrão do Miguel, estás a dar-me baile, vais ficar à espera até me apetecer". Até lhe apetecer. A fazer o que lhe apetecer. Tem resultado bem este subterfúgio da culpa. "Vou fazer o que me apetecer, toda a gente à espera que eu me comporte como querem, a mim não me apetece, sou dono de mim. Tenho direito de fazer o que me apetece. Apetece-me gastar dinheiro, apetece-me foder, apetece-me beber, apetece-me mentir. Foda-se apetece-me! Caralho, não mandam em mim. Estou farto de obedecer." Na verdade foi uma vida inteira a desobedecer, a fazer o que lhe apetece, nem a anulação do superego é nova, mas a relatividade oscila na medida do desejo.

- Bernardo, então? Tudo fino?
- Adão, estás melhor?
- Melhor? Sim, estou óptimo. Porque é que não havia de estar bom? Foda-se..
- Por nada... Estás a sair de casa?
- Não, achas? Por acaso tive que vir agora a casa buscar uma coisa. E nada, apeteceu-me ligar.
- Ok, está tudo bem?
- Sim. Olha, nós ontem falámos, não foi?
- Sim...
- Eu sei que falámos, mas já não me lembro bem, tinhas-me perguntado qualquer coisa..? que eu fiquei de ver?
- Não, não perguntei nada.
- Hmmm.. ok, fiquei com essa impressão.
- Olha, tenho que trabalhar agora, ligo-te mais logo.
- Mas estava tudo fixe? Ficaste chateado com alguma coisa?
- Só com o facto de me teres acordado a mim e à Madalena às 5 da manhã.
- Foda-se já não posso ligar a um amigo quando me apetece? Só não percebi que era tão tarde, desculpa lá olha...
- Na boa. Caga nisso.
- Mas correu tudo bem, a conversa?
- Sim Adão, correu tudo bem. Estavas com os copos, mas dentro disso correu como previsto.
- Pois, estava um bocado. Foda-se não me lembro de muita coisa. Mas liguei à Sara, uns 15 minutos de conversa.
- Não sei o que lhe possas ter dito em 15 minutos no estado em que estavas, não queria estar no teu lugar.
- Bem caga, não quero pensar mais nisso, caguei na miúda.
- Acho bem. Olha, tenho mesmo que ir trabalhar, falamos logo.
- Sempre a despachar-me, caralho.
- Vá, abracinhos.

Em frente ao espelho do corredor vê o seu corpo semi-musculado de frente, não se vira de perfil, não fez natação em pequeno, é estreito, da espessura de uma pessoa doente. Vê melhor a cara. Rugas. Cabelos brancos. A campainha. A campainha? Vai à porta todo nu, espreita e não vê ninguém, levanta o auscultador e não ouve ninguém. "Qué esta merda? Falta de respeito a tocar a esta hora para casa das pessoas e depois não dizem nada, provavelmente é o cabrão do carteiro, que falta de civismo, tsc tsc".

No café, sempre ao balcão, engole meio folhado de salsicha de uma dentada e bebe metade da meia de leite, nunca gostou de meia de leite, ao sair chamam-no para pagar a despesa, esqueceu-se outra vez, o empregado sorri. Novamente no balcão o telefone toca.

- Estou?
- Adão!
- Quem fala?
- Rodrigo. Estás bonzinho?
- Olha o abertura! Está tudo bem, e tu? Porreirinho?

Rodrigo, uma das velhas ligações ao bairro da sua adolescência e ao rugby, tem uma proposta de jantar irrecusável, o novo restaurante de um amigo comum na Bica, degustação e bebidas à discrição, as meninas Saldanha, a Xuxu (a Xuxu!) e a prima (não sei o nome dela mas também é prima do Rodrigo e da Madalena do Bernardo), a Mafalda Viana e umas amigas assistentes de bordo, provavelmente um grupo que incluía a Mariana Sousa Macedo. Irrecusável. Aceita, com uma reserva suave, tinha até às oito da noite para chatear-se com a Eva. O dia já começava a parecer mais bonito, quase não lhe doía a cabeça, saiu do café com uma imperial na mão (afinal era praticamente meio-dia).

O dia no escritório passa rápido, entre fricções forjadas com o Miguel, que condescende superiormente numa arte da fuga desenvolvida ao longo de 10 anos de convivência funesta. Miguel gostava de espicaçar e depois dar o lombo. Ao fim do dia, depois de toda a gente sair, já conseguiu que Adão estivesse suficientemente à vontadinha para entrar na sua sala com uma garrafa de Johnnie Walker.

- Vai um copinho? Binsky?
- Ahahah!
- Ahahah, bora lá pá, já bazou toda a gente.
- Siga, vou lavar copos do almoço.
- Temos que trazer uns copos decentes para o escritório - Adão puxava duas cadeiras para perto da janela, uma vista deslumbrante sobre o rio e a praça D Luís I, onde já os romanos "fundeavam".
- Qual é a ocasião? Tens festa hoje?
- Olha-me este, sempre a julgar que sabe ler as intenções dos outros! Tenho pá, por acaso até tenho. A inauguração do restaurante de um grande amigo meu. Queres vir? Posso levar um amigo.
- Sou teu amigo? Então quero.

Bebem apenas dois copos no escritório mas conversam por três ou quatro. Adão tem indubitavelmente um carisma social que prende pessoas a uma teia de fascínio e preocupação como a um companheiro de guerra num posto avançado. "Falta-te? Eu arranjo-te!", "Sofres? Eu sofro contigo!". É fraternal e chega a compensar os momentos maus. Miguel sabe-o de longa data, já conhece as desilusões subsequentes, e deixa-se levar na mesma. Afinal é com Adão que tem as melhores histórias de copos, e as piores histórias de confiança traída. Falam da vida de Miguel em Londres, dos grupos de portugueses emigrantes na cidade, Adão diz que conhece perfeitamente Londres, e conhece perfeitamente os grupos de emigrantes porque uma grande amiga sua mora lá, aliás, dois grandes amigos seus, porque o melhor amigo dela também é um grande amigo dele, conhece perfeitamente Londres e o melhor amigo da sua grande amiga. Miguel não os conhece. Ou melhor conhece Londres apenas. Adão fala de Piccadilly, e da Tower Bridge, e de quando foi à Tate, onde viu o Banksy. Estava lá, o Banksy, a ver uma exposição e Adão reconheceu-o e foi lá falar-lhe, pagou-lhe um copo. Miguel ignora o momento confrangedor, pergunta-lhe se viu Brick Lane e Adão faz uma cara não treinada, Miguel corrige, "o mercado de Brick Lane", e Adão lembra-se em silêncio que Eva lhe falou em ver mercados e ele preferiu ir beber pints num pub incógnito enquanto Eva se divertia femininamente a ver "mercados" tsc. Diz que, ah sim, conhece perfeitamente Brick Lane e até pormenoriza o ambiente de feira. Miguel gosta da conversa porque fintando pela eloquência fantochada de Adão ele até tem piada. Apesar de se rodear de pessoas que começaram a cultivar os interesses e o futuro na adolescência quando ele andava interessado em ser adoptado pelos betos de Cascais e em ser convidado para as festas em casa do tio Patinhas, quando não está a tentar fazer uma demonstração de cultura plagiada dos melhores amigos escolhidos a dedo, até tem conversa de homem e um raciocínio bastante ágil, podia ser um stand up comedian com um laivo dramático. Aliás foi essa versatilidade que lhe permitiu agregar gregos e troianos no mesmo pote de amizades, aquele que gostava de ser o melhor amigo de toda a gente se ao menos conseguisse controlar o ódio que sente por quem se atravessa no seu fantasioso percurso de locomotiva rumo ao estrelato.

Quando a conversa entra na fase boa falam da vida, das relações, Adão abre o jogo da fragilidade conjugal, de como a dependência que os homens têm das mulheres os torna piores companheiros, quase se escrevia um blog com tanto experimentalismo pessoal, mas depois entram pelas miúdas do seu passado, e acabam a comentar uma ex-colega de universidade em comum, a Sara Albuquerque.

- Que coincidência do carapau! A Sara Albuquerque??
- Foi da minha turma, mas quem é que não conhece a Sara Albuquerque?
- Que mamões, meu deus, sempre a apontar o caminho.
- São o Norte e o Norte magnético.
- Ahah!

São quase nove horas, Adão esqueceu-se de se chatear com a Eva, que também não ligou, dir-lhe-á então a verdade quando chegar a casa, assim chateia-se depois do facto consumado e nem precisa mentir. Descem lentamente a escada, numa altura em que o álcool e o burburinho surdo da rua são o composto anestésico da antecipação, da excitação processional de um evento nocturno cheio de gatas. A rua fervilha de grupos entre os 20 e os 30 anos de onde só o género feminino sobressai a Adão, miúdas de calções acima das nádegas, vestidos leves e curtos, peitos de franga generosos que preenchem facilmente decotes largos. Miguel já sente a mesma emoção adolescente de Adão, embora com mais vergonha da sua própria libido proto-alcoólica e mais contido nas observações.

- Isto está a puta da loucura!
- Mulheres boas comendo meloas!

Param à porta do restaurante "A Peixeirada do Bairro" e Adão começa o folclore dos abracinhos e das gargalhadas de longo curso pelas muitas pessoas à porta de aperitivo na mão. "Grande Adão, nunca falhas. A Mariana Macedo não veio, caríssimo" diz-lhe o Rodrigo logo de chapa "Voou para um daqueles países com ébola, está de quarentena em Tróia". Adão procura disfarçar a primeira desilusão com uma irritação dissimulada "Ah sim? Que bom para ela" e passa às apresentações "Este é o Miguel, um grande amigo meu". Olá, olá, Rodrigo, Margarida, um beijinho, Miguel, olá, olé, Tomás, Mariana Pires de Lima, Barbosa de Mello, José Coutinho, Caetana Veloso, um beijinho, um olá, um copo para a mão trazido por Adão que num salto rouba dois aperitivos com uma azeitona cada e em menos de nada bebe o seu sem distinguir o tipo de álcool, come a azeitona e cospe o caroço para a mão procurando logo onde o deixar, voltou para a bandeja do empregado.

Depois das apresentações e dos sorrisos automatizados de boas vindas indiferentes Adão apresenta Miguel já no interior ao dono no restaurante, com quem não tem grande confiança, "Este é um grande amigo meu" e o dono do restaurante cumprimenta-os activamente pergunta se estão a gostar de tudo e volta freneticamente ao trabalho de gerir os empregados com um chicote de cinismo empreendedor. Miguel e Adão formam instintivamente o seu mini baluarte perto da saída das bandejas de canapés e cálices tintos. Retomam a conversa no ponto onde ficou, mulheres giras, agora ilustrada pela alta densidade de bons espécimes da alta sociedade que enchem o espaço e a rua. Saindo-se da hora dos mosquitos acelera-se pelo período do jantar, já toda a gente navega em copos de gin e whiskey, um grupo de betos rurais pede aguardente e imitam uma pega de caras com um dos menos peludos do grupo, há alguma fricção entre machos invisível a Miguel mas que Adão aproveita como pretexto para se agruparem a duas miúdas que parecem do seu campeonato.

- Não tarda nada temos tourada aqui dentro.
- Estás a convidar-nos para sair daqui? Bora!
- Ahahah - Adão surpreende-se com o sucesso rápido, excitadíssimo ri mais alto que todos e começa o festival de chistes geniais que não tento reproduzir porque não tenho metade da sua piada. Todos lhe admiram o brilho repentino. Miguel não está convencido com elas, são velhas, diz-lhe, para cima de 40 anos. Adão bebe álcool com a certeza de um profissional mas o mundo passa a parecer-lhe demasiado perfeito, excepto quando lhe parece uma merda de futuro negro. A miúda em quem Adão firmou os ferros é a mais gira, a mais afoita, mas também a mais velha. Tem 45 anos, a miúda, e uma filha adolescente que o faria ponderar a pedofilia, tem botas de pele de cobra, aceita engates dos anos 80, enfim, no meio do paraíso terreno em que se transformou este dia e esta noite, esta mulher é como um São Pedro com saudades dos prazeres da carne. Miguel afasta-se e leva com ele o par que lhe calhou, por cavalheirismo apenas, e ela percebe-o. Adão desaparece à porta com a mulher que parece sua tia.

O local começa a fechar as portas e transforma-se num bar de engate em estância balnear, Miguel subtilmente ostracizado à chegada, acaba por fazer amizade com a dita mulher amiga e com uma das irmãs Saldanha, óptima, moreno-loira de olhos verdes-azuis-acastanhados, e que se mostra um bilhete convidativo para qualquer lado que não para casa sozinho. Não consegue desfazer-se da velha de 37 anos.

- 37 anos, só? Pensei que fosses mais velha.
- Que idiota - diz a companheira de noite cuja amizade se tornou elástica, relatado apenas neste tom dir-se-ia que ela lhe ia despejar um copo na cara, mas estão os dois em esticada brincadeira de bêbados de surpreendente familiaridade, Inês Saldanha de 29 anos ri-se entusiasmada pelo abuso Miguelista, quase excitada por reconhecer ali a matéria arrogante de quem faz amigos entre os rústicos, mas não, nem Miguel teve essa intenção, nem iam ficar sós, que uma velha de 37 anos tem o seu orgulho de empata fodas. Eventualmente um Pereira Coutinho Ricciardi de Castro Laboreiro mete conversa com Inês e leva-a ao Lux.
- Querem vir? - diz ainda Inês enquanto o rapaz tira a chave do Jaguar que tresanda a Banco Mau.
- Obrigado, mas combinei com o porteiro nunca mais aparecer à frente dele na vida - apenas a mulher de 37 anos se ri, Inês esboça um sorriso confundido e o rapaz loiro de barba forte ignora-o profundamente.

Adão não sabe onde está, sai da porta de um prédio velho e acende um cigarro ao contrário. Depois acende outro cigarro ao contrário. Por fim acende um cigarro do lado certo, olha em redor e parece-lhe distinguir a Rua da Escola Politécnica à esquerda, mas era a Conde Redondo. Ainda recente flutuam imagens de luzes baixas, lençóis de seda, lábios borrados, o toque felpudo da base exagerada e de um rabo quase bonito mas flácido, e a preocupação constante por não fazer barulho para não acordar alguém que dormia no quarto ao lado. Uma erecção pouco consistente por consequência e tudo e ainda do vinho, que a dona da casa se esforçou por reafirmar num broche desastrado que envolvia incisivos. "Táxi!" não parou. Desce a rua a pé, passa pelas mulheres barbudas, olha duas vezes para um transexual bonito e luta com a sua consciência. Mais abaixo pedem-lhe lume e ele reage aos berros. Noutra rua a subir passa um carro cheio de gente e música e gritam-lhe algo imperceptível, ele já não tem forças nem criatividade para criar a má índole de quem lhe gritou obscenidades, resmunga entredentes contra os filhos da puta em geral.

São 4 e tal, o álcool não passa, o que se passou há 5 minutos parece-lhe desconexo com o que se passa agora, tudo são memórias soltas, as pedras da calçada ainda ali eram oblíquas, fachada, passeio, estrada, jardim, as imagens rodam e não se colam no mesmo plano, não é fácil entender o caminho, o som está em mono, o ruído de fundo está marado, está cansado, está tão cansado. Deita-se num banco à sombra de um abutre num candeeiro.

- Barnaaardo...
- Tou, então meu, o que é que se passa?
- Estás bonzinho?
- Puto, vai-te foder, estás-me a ligar a esta hora? Passa-se alguma coisa que mereça que me acordes a esta hora?
- Estou a ligar ao meu amigo. Não posso? Gosto tanto de ti puto.
- Olha, vou desligar.
- Espera aí, estou na merda.
- Então Adão? O que se passa contigo caralho?
- No passa nada, qué no passa nada, eheheh...
- Adão, foda-se, porque é que me ligaste? Estás na merda porquê?
- Porque eu sou uma merda, o teu amigo é uma merda de um gajo. Fiz merda. Outra vez, fiz merda outra vez. Enrolei-me com uma miúda, muita gira, mas mais velha. Estou deprimido. Linda, morena de olhos verdes, epá, chuac! Daqui! Ias-te passar. Uma beca flácida. Estou todo fodido, estou aqui num jardim, acho que é o Jardim Constantino (não era, obviamente, já estava no Príncipe Real) bem giro. Adoro a Eva, a Eva é a mulher da minha vida. Ela é fodida, trata-me abaixo de cão, mesmo tipo, abaixo de cão. Sabes como é um cão? É abaixo disso. Que puta!
- Ouve, vai dormir. Amanhã falamos melhor, pode ser? A Madalena já se está a passar. Já tive que me levantar da cama para falar contigo. Prometes-me que te metes num táxi para casa? Estou?

Adão deixa cair o telefone, salta a bateria e Bernardo aproveita para tirar o som ao seu, a custo conforta-se fingidamente no facto de Adão ser protegido por Baco, desde sempre, o sono e a paciência não o deixam preocupar-se mais.

Fica sentado no banco de jardim sem segurar bem o pescoço a olhar para o ecrã aceso do telemóvel. O momento chave da depressão alcoólica, que anda sempre a rondar o suicídio social. Adão é uma pessoa igual a toda a gente. Queria ser melhor do que é na prática. Choca-se com as suas próprias atitudes, corrige-se por períodos curtos e volta a cair nas suas próprias armadilhas. Casa, escritório, Eva, putas, vinho maduro, mãe, grandes amigos com vida própria. Sem os outros é o quê? Criou o quê? Onde está aquilo que perseguiu? Bom, perseguiu o quê? Quem lhe ensinou o que havia de ler, de ver e de ouvir? Quem fez dele aquilo que ele é? Na verdade foi criado por uma amálgama de coincidências educativas, como toda a gente. Vendo bem resultou melhor que muitos, vestiu a camisola do empreendedorismo sem escrúpulos e isso deu-lhe uma vida mais ou menos estável. Isso é que importa, para tem horror à sua própria morte e apenas gere o presente: a sobrevivência.

O telefonema seguinte vai para a Sara Albuquerque. Uma viagem inconcebível de 15 minutos pelo egoísmo insocial de Adão, pelo seu profundo Id filtrado a peneira larga que fixou uma obsessão apaixonada na ex-namorada de um ex-grande amigo. A Sara é uma miúda amplamente pretendida, e a compleição física extraordinária é apenas um bónus inacreditável, é alguém que se pretende logo à partida para ter filhos e criar raízes em qualquer lugar que ela decida, caso se consiga sobreviver ao seu temível sarcasmo de mulher feliz e de bem com os outros. Até terminar a relação com aquele cujo nome não será mais lembrado apenas tinha socializado com Adão por intermédio do namorado, depois disso foi alvo constante das suas emboscadas patéticas forjadas nos meandros das partilhas públicas do Facebook e no átrio do Holmes Place de Alvalade, para onde Adão tinha que ir de transportes públicos baldando-se do escritório antes do fim do dia. O seu amigo naturalmente deixou de o ser quando se soube disto. É impossível adivinhar o que é dito por um bêbado irrazoável a uma rapariga que mal conhece, tão experiente quanto assustada às 5 da manhã de um dia de semana, mas o telefonema durou 14 minutos e 23 segundos, e não há quem assegure que a Sara não vive já com outro namorado, que não é outro tipo do Direito, ou um porteiro de discoteca, ou um dealer da Bela Vista. Não há quem assegure que foi com ela que ele falou.

Acorda num táxi, com um homem a puxá-lo para fora do carro "Está entregue chefe", não se lembra de pagar a corrida, porque o taxista encostou o carro quando ele adormeceu e tomou a iniciativa de lhe vasculhar a carteira. Reconhece a porta de casa a 20 metros. Novamente afluem memórias recentes de um porteiro obtuso, de uma fila numa casa de banho de mulheres, "Que idiota!" alguém desse grupo lhe dizia, imagens de notas e mais notas a sair do multibanco e da carteira, imagens suas a dançar sozinho numa pequena clareira de gente bêbada, talvez menos que ele. Cruza-se até à porta de casa com pessoas do seu quotidiano sem as ver, deita-se na cama de Eva que tem as costas bronzeadas e cuecas brancas, tenta encostar o carro à praça, mas ela levanta-se de forma automática num salto e vagueia pela casa atordoada, volta ao quarto e Adão adormeceu, vê-lhe mensagens e chamadas no telefone sem grande emoção, vai beber água, toma banho, lava bem a cara, lava bem os dentes branquíssimos, bem demais, vai à net ver casas para alugar sem grande intenção de o fazer.

- Estou?
- Bom dia.
- Olá. Madrugaste - bocejo - Ele já chegou?
- Sim. Chegou há 15 minutos. Caiu na cama.
- Estás bem?
- ...
- Eva?
- Não sei. Quero estar contigo.
- Queres passar aqui? Já tomaste o pequeno almoço?
- Não é de comida que preciso. Passo aí.

Na rua o sol das 8 já aquece demasiado, Eva sentia um frio nocturno entranhado na pele desde ontem ou desde o Inverno e o calor sabe-lhe a protecção paternal, protecção que Adão lhe dava ontem e há milhares de anos, e que crescentemente se inverteu até se tornar no peso da responsabilidade de cuidar de um homem preso na adolescência que destrói tudo em que toca, e o amor se transformar em dependência do ódio. Hoje será outro dia, eventualmente.

New York, I love you but you're bringing me down

tenho saudades tuas.

hhmm... então está bem.

não, tenho mesmo. está a nevar aqui, e lembrei-me que nunca tinhas visto neve. eu também não tinha, agora vejo todos os dias, já estou farto.

pois, aconteceu-te o mesmo comigo. vias-me todos os dias.

não sejas parvo, não foi nada disso. estou a dizer-te que tenho saudades tuas. tenho pena que não nos vejamos há tanto tempo.

foi uma escolha tua. não estás a culpar o destino pois não? essa desculpa dos maus navegadores. e muito menos deves estar a culpar-me a mim, espero.

não foi escolha nenhuma, não estou a culpar ninguém, o mundo avança e as coisas passam-se como se passam. nunca foi uma decisão, tomei várias mas esta não. não sejas agressivo.

foi uma negligência? avisei-te muitas vezes. desapareceste. foste desaparecendo. foi como o fim de tantas relações amorosas, para uma das pessoas é a morte, para a outra é uma necessidade incontornável.

não desapareci, estive sempre aqui, ó egocêntrico. eu sou o personagem principal da minha história, não é? afastámo-nos, só isso. vidas diferentes, foste pai, eu mudei de emprego, novos colegas, nova turma. os meus horários também nunca foram fáceis. mas nunca deixei de aparecer, foi um esforço que nunca desisti de fazer.

estás a brincar comigo rapaz. fui pai por duas vezes, tiveste oportunidades a dobrar para aparecer, permites-me dizer que tinhas o dobro da obrigação de aparecer? simplesmente não estavas interessado nas criancinhas dos outros, dos teus amigos. lembro-me de teres recusado um convite com um "desculpa, tenho que trabalhar, e agora este ano que vem vai ser complicado, vou ter imenso trabalho". este ano que vem?! quem é que diz uma merda destas? o ano que vem não posso combinar mais nada.. é como que uma vacina para convites indesejados, a partir daí escusas-te a dar mais desculpas. não soube como reagir, apetecia-me rir e chorar ao mesmo tempo, falhaste aniversários meus e dos meus filhos, dos nossos amigos. mas para as festas dos teus colegas e para ir ver todos os jogos do Albarraque FC continuaste a ter tempo. bardamerda pá. deixaste completamente de aparecer. não leves a mal, já não estou chateado, a marca que as relações deixam esbate-se bem com o tempo. mas parece-me estranha essa conversa de quem acorda agora de uma bebedeira destruidora.

meu, estás enganado, tive realmente muito trabalho, não saí assim tantas vezes com colegas meus e os jogos do Estoril foi porque era convidado por um gajo que me arranjava trabalho. nunca deixei completamente de aparecer, estás a ser injusto e infantil. a relação com a Sara, essa sim, foi açambarcadora e destruidora. já não estamos juntos, nunca te cheguei a explicar e agora já não vale a pena. acabou essa fase da nossa vida, já raramente nos falamos. ela esteve cá há duas semanas, mas enfim, foi mesmo a última vez.

"a relação com a Sara", quem é a Sara caralho? sei lá que relação tiveste com essa pessoa? quero que ela vá ter meninos pela barriga das pernas. achas normal os teus melhores amigos, os teus amigos de infância, eu! não saberem se tens ou não uma namorada? ou melhor, onde vives sequer? achas normal eu ter vergonha de te perguntar alguma coisa acerca da tua vida com medo de ouvir sempre a mesma resposta "meh, uma merda como sempre" e recusares-te a entrar em mais pormenores? achas normal passares a vida a justificar uma gaja que te impediu de te dares comigo? quero mesmo que ela se foda, toda. não por ter alguma raiva dela, é mesmo só porque não a conheço de todo. tenho raiva de ti por achares isso normal, e por tomares a iniciativa de te afastares de mim para que de alguma forma seja compreensível eu não a conhecer. "ai minha nossa senhora, mas tu não compreendes mesmo, a nossa relação sofre de problemas irresolúveis, dificílimos de explicar a elementos externos, quando tiveres idade explico-te tudo", meu amigo, tu julgas que a tua relação é especial, vocês são pessoas especiais, com problemas especiais, problemas que torceriam as correntes da filosofia moderna e fariam ruir pela base as principais escolas de psicologia familiar da Estremadura. meu amigo, tu tens ou tiveste ou o caralho, uma relação banal, com problemas banais, aborrecidamente banais. quem tem problemas graves são vocês, isoladamente. tu, mais concretamente, por seres cego e não largares logo essa egoísta de merda que te fazia mal.

não é assim. estás a falar do que não sabes. não admito que desrespeites a minha vida ou as pessoas que fizeram parte dela. até a ti estás a desrespeitar-te, por achares que eu seria capaz de tirar importância à nossa amizade de 30 anos em prol de uma pessoa nova. não, há vários problemas que não envolvem a Sara, eu explico-te alguns. um aspecto importante foi tu teres-te metido com a última miúda que eu trouxe para o grupo. ainda me hás-de explicar essa história. eu não vejo as relações como tu. para ti tudo o que mexe é comestível. não tens respeito pelos teus amigos se isso implicar enrolares-te uma miúda. muito menos tens respeito pelas tuas amigas. isso foi o climax de um percurso nosso, tirou-me a vontade de te apresentar muita gente, gente que fui conhecendo e que passaram a fazer parte da minha vida também.

a Catarina?! isso foi há 15 anos! e eu passei semanas a forçar um romance entre ti e a tua própria amiga! fritei a cabeça a pensar que havia alguma coisa entre vocês e tu não aceitavas, tu sempre fizeste um ar enojado, de alguém a quem acabavam de impingir a própria irmã. um dia estávamos todos na esplanada e ela começou a mexer-me com os pés por baixo da mesa, e pronto, percebi tudo e desisti de vocês, foi isso que se passou. eu não fiz nada por isso. agora dizes-me que ficaste com ciúmes? se simplesmente não querias foder nem sair de cima podias ter-me explicado esse conceito marado, eu aceitava, em vez de teres negado algum tipo de atracção por ela.

estás a ver? és um ordinário. e um puto. sim, era só minha amiga e sim, fiquei com ciúmes. senti-me um idiota, traído pelos dois, na ignorância. não precisavas de ir lá marcar o teu território de neandertal excitado. a partir do momento em que te enrolas com uma miúda ela deixa de poder pertencer ao teu grupo de amigos de todos os dias, porque tu andas todos os dias pronto para engatar. e ela era minha amiga, eu tive que deixar de me dar com ela. mas há mais. fartei-me da tua condescendência, dos teus conselhos matrimoniais para quem anda no engate. eu não sou como tu. não quero coleccionar cromos de mulheres. queria só uma mulher e era a Sara. e fartei-me que me dissesses para a esquecer, para me proteger, quando querias era proteger a tua própria posição em relação a mim. desculpa, eu nunca senti especificamente isto, mas é mais ou menos óbvio.

não, tu não querias era ter a voz de alguém a dizer-te que estavas a proceder mal.

não foi nada disso.

foi.

não foi.

foi. e deixa-me dizer-te mais uma coisa...

desculpa ter-te chamado ordinário.

deixa-me dizer-te mais uma coisa: a tua persistência em rebaixar-te para perseguir uma miúda que não queria saber de ti, teve de facto o efeito que querias, ela aceitou-te, mas aceitou-te com essa imagem de um pedinte, fragilizado, um cãozinho disposto a ficar sentadinho no passeio à espera dela, de um biscoito. isso nunca podia resultar. sobretudo contigo, que és orgulhoso à brava, menos com mulheres que achas lindas. aí ligas o idiota.

estás a irritar-me, vê lá se te controlas, tu não a conheces e...

pois não, nunca nos apresentaste pá..

... tu não a conheces, nem ela nem eu pensamos nas relações como uma guerra e com jogos e culpas, como tu pensas as tuas, em que o rancor é o mote para a criação de laços. tu não consegues ser melhor pessoa por causa desse rancor acumulado em cada relação, não consegues dar parte fraca. os laços criam-se de outra forma, sem mágoas ou preconceitos acerca das intenções do outro, essa raiva que tu guardas amputa-te...

"amputa-te"? ahah que belo tempo verbal.

... sim, amputa-te, castra-te a capacidade de resolver os problemas recorrentes nas tuas relações. são sempre iguais, já viste? fartas-te sempre das tuas relações da mesma maneira, depois de anos de andarem à chapada.

há chapadas e chapadas, devias experimentar, há quem goste. por acaso a Sara não tem ar disso.

foda-se és 8 ou 80. passas da maior agressividade pubertária, ofendendo e magoando como só tu sabes, para uma palhaçada absurda e fugitiva. criticas-me e pões-me a justificar e a pensar naquilo que sou e no que faço, numa autopunição, mas uma crítica que te é dirigida só merece o teu desprezo e o teu gozo juvenil, mesmo vinda de um amigo. já me lembro porque me afastei de ti.

agora estás a ser mau. não assumas que te afastaste de mim conscientemente, sobretudo não assumas que o fizeste porque eu sou má pessoa. sabes que isso me dói. estou a falar a sério.

és péssima pessoa, mas eu já sabia disso desde a 3a classe.

eu sei que sou... mas pelo menos nunca te mandei um murro.

tinha que vir isso, não é?

é. isso e a vez que larguei toda a gente na minha festa de aniversário nos santos e fui contigo às cavalitas de Alfama ao Marquês porque estavas a ter um ataque de asma.

ah! o que é que isso tem a ver? pois foi. e nessa altura eu estava gordo. e bêbado.

e já não estás? bêbado.

bêbado pois... gordo és tu. e burro.

"ai gordo és tu"...

gordo e burro que nem uma porta.

...

...

o que estás a fazer agora? estava a tentar imaginar.

estou em casa. fui buscar o jantar ali abaixo a um paquistanês, há aqui lojas sem um único gajo que fale inglês. está um frio de rachar narizes, neva a.. cântaros... agora estou à janela a ver a neve, a fumar um cigarro, e a pensar pegar no telefone para te ligar, saber de ti.

não faças isso... não era capaz de te dizer estas coisas todas. ia fazer uma festa, perguntar-te como está a correr tudo, quando vens a Portugal, dizer que tenho que ir aí visitar-te, sabendo-se perfeitamente que nunca iria, aliás nem te especificava se levava ou não a família, e tu não perguntavas. tenho demasiadas saudades para ouvir a tua voz e desatar a desancar-te. até porque as tuas respostas não seriam estas, és mais imprevisível do que eu me consigo lembrar. e à noite na cama já eu estaria a imaginar o que te diria da próxima vez que ligasses. ficamos antes assim.

ainda me hás-de explicar essa história

não foi nada de especial. um dia estávamos todos na esplanada da praia e ela tirou os chinelos e meteu os pés em cima dos meus. por baixo da mesa, nenhum de vocês percebeu. e pronto, percebi ou convenci-me que não ardia mesmo nada entre vocês os dois.

mas foi só isso a vossa relação? pés em cima dos teus na esplanada?

hã? tás-totó? achas que sim?

ah.. ok. mas estávamos sempre todos juntos, então?

então nada. fomos combinando. passava às vezes em casa dela à noite depois de me despedir de vocês, às vezes íamos só tomar um copo. à vossa frente eram os preliminares, em toques fortuitos planeados e indirectas privadas, até foi engraçado. isto durou no máximo uns 15 dias, depois ela começou a querer casar e eu saltei do barco. foi aí que ela te contou.

és mesmo um cabrão. mas ela não tinha um namorado? uma vez apresentou-me um gajo, eu costumava vê-lo à espera dela à porta do IADE, sempre de fato, andava num Saab descapotável?

não, isso era um gajo que andava a pairar. uma vez estávamos a combinar por mensagem, era tardíssimo, ela disse que não estava em casa mas que estava a chegar, para eu ir lá ter. cheguei, esperei uns 10 minutos, e estava encostado ao carro, aquele meu AX de 100 contos, a fumar um cigarro quando ela chegou de Saab, despediu-se do rapaz com dois beijos e veio ter comigo. estava longe, não percebi quem ele era, mas reparei que ficou a vê-la caminhar até mim e dar-me um grande beijo na boca. entretanto arrancou. quando lhe perguntei quem era o gajo, ela explicou-me que era um amigo, e que naquela noite tinha sido muito querido, levou-a a jantar a Sintra, e depois a um bar cromíssimo e que gastou uns 60 contos com ela naquela noite, ficou emocionada, mas era só amigo.

foda-se!

pois, coitado. 60 contos era quanto eu ganhava por mês na altura. eu costumava levá-la às rulotes do elefante azul, lembras-te? no Catalazete?

ahah