- estes hambúrgueres estão bons!
- estão, não estão?
- fizeste como?
- só têm sal.
- só sal?
ela respondeu-me com o silêncio. tinha um sorriso lascivo, lambuzava-se com a carne alta e mal passada. a acompanhar comíamos um arroz thai dos dela (meio queimado) inundado dos sucos da carne, e um escabeche de pimento vermelho assado. o meu puto de 2 anos enchia a boca de pedaços da carne tostada que eu próprio lhe cortei previamente, gordura escorria-lhe pelos dedos das mãos, garfo e colher já derrotados ao lado do prato, delirava. "os habugas 'tão bons mamã", dizia o papagaiozinho.
- desculpa, mas há qualquer coisa nestes hambúrgueres, na carne?
sorriu sem me olhar.
- é carne alentejana.
- ..? "Carne Alentejana"?
- sim.
- do teu ex?
- sim.
finalmente o sorriso aberto e vitorioso, o segredo perverso atirado à minha cara encharcado em sangue da carne cozinhada. decidiu experimentar a qualidade do produto do homem, ao fim de anos de comentários pontiagudos acerca do seu sucesso, do seu empreendedorismo. e eu? porque é que eu estava a alimentar a qualidade de vida daquele animal, deixando-o alimentar-me a mim?
- isso é assim?
- é.
- e estás a dar carne dele ao nosso filho?
- não é boa?
em tempos a minha mãe contou-me que fez uns bifes de carne de cavalo para o meu pai, a quem só a ideia dava vómitos (carne de cavalo esteve na moda durante cerca de 15 dias na década de 80). ele, não percebendo, não reclamou, alambazou-se e não direi que felicitou a minha mãe porque não era esse o seu modus operandi, digamos assim. há qualquer coisa de conspirativo, de perfídia, em cozinhar para um homem algo que ele objectaria se soubesse no que consistia. o casamento dota silenciosamente as cozinhas de um princípio de confiança cega, pode conquistar-se o outro pelo estômago e também se pode matá-lo. eu experienciei pelo estômago a deslealdade, a traição, a fraude, a dor! na forma de hambúrguer.