há cerca de 15 anos, eu estava na estação de comboios de Caxias, à espera do primeiro comboio da manhã (noite). deitado num banco, no banco seguinte estava o meu amigo Pastel. vínhamos de uma festa estranha, a aniversariante tinha alugado um restaurante que era na prática uma casa enorme sobre uma encosta da marginal. grande terraço, grande vista de mar, mas era noite sem lua, não se via um cu. dinheiro adolescentemente gasto. mas era giro.
tínhamos chegado já no fim da festa. vínhamos de outra festa. prometi à aniversariante que passaria no fim da noite no restaurante. só a conhecíamos a ela e uma amiga, que nos recebeu à porta. a Fafá. "AAAIIII ele chegou!! espera aí Zé, não sei se é boa ideia ires ali agora. é melhor eu ir lá primeiro, espera aqui!" e do fundo dos meus 18 anos eu esperei. eu e o Pastel. "já deve estar agarrada a outro gajo" disse-me ele. pois deve.
a Mia apareceu, tapou com as duas mãos a cara, adorável, e disse "eu não acredito! isto é que são horas?" e deu-me um beijo na boca como nos filmes. estava boa, gira, bêbada. de vestido curto preto, colans, bêbada. depois do beijo, a Fátima aproximou-se e disse baixo "Mia, olha lá o Bebé, está todo ciumento". o ex-namorado. aparentemente tinha direito ao ciúme, porque a Mia disse-me "desculpa, mas hoje é complicado, devias ter aparecido mais cedo". disse-me para esperar um bocado e foi lá dentro. a ideia de haver um gajo que sabia quem eu era, sabia que eu estava ali e tinha ciúmes da minha presença, era agradável, é que eu não sabia absolutamente nada acerca dele. eu e o Pastel ficámos cá fora a conhecer o sítio, tinha uns jardins, uns casais protegidos pela falta de lua, umas miúdas a vomitar numa varanda, uns putos a travar a respiração "hey, querem?" ok, jafumega.
o Pastel perguntou-me se eu sabia do outro gajo. sim, sabia da possibilidade. "e queres esperar? ou vamos embora?" não sei, vou lá ver como está aquilo. já tinham passado uns 15 minutos, que na minha percepção do tempo encharcada em álcool equivalem a 45. fui. estava um grupo grande sentado num sofá enorme e a Mia estava ao colo do Bebé aos beijos e a fazer-lhe festas no cabelo. provavelmente esqueceu-se de mim, pensei, abrindo para mim próprio a possibilidade de ir lá dizer olá. os 18 anos podem ser por si só uma situação muito ridícula. o meu 'par ou ímpar' interno safou-me à humilhação.
no caminho para a estação ia completamente colérico. aquela vaca! não se faz! "pois não" pois não Pastel! vim cá fazer figura de otário, que merda é esta? nunca mais lhe falo! mas no fundo só estava frustrado por ter decidido vir embora. talvez se lá ficasse mais meia hora ele se tivesse ido embora e eu ficasse com ela. e sexo! e tudo. agora ao chegar à estação já não tinha a mínima esperança de voltar a vê-la. aquele comboio ia levar-me dali para sempre.
deitado no banco, disse então ao Pastel que ia voltar para lá. "estás totó? que ridículo, vais lá fazer o quê?" não sei, vou fumar outra com aqueles putos, vou fazer uma proposta a um daqueles casais do jardim, ou vou aproveitar-me daquela miúda que estava a vomitar. entretanto pode ser que a Mia se arrependa, ela insistiu imenso para eu lá ir ter, no mínimo devia ter-me despedido. "foda-se, que camelice. ela é assim tão boa na cama?" não sei, nunca estive na cama com ela. a última vez que saímos demos uns melos num sofá de uma disco do Cais do Sodré, e foi só isso. mas acho que estou apaixonado! "epá... tu deves ser é parvo. não! eu é que devo ser parvo para vir para aqui contigo" não sejas assim, já fiz o mesmo por ti, com aquela Milene do Casal Ventoso. ele andava doido com ela. cheguei a ter que esperar por eles de noite num jardim de prostituição de agarrados. "ela não era do Casal Ventoso, era de Campo de Ourique". whatever.
a minha cabeça funcionava então numa equação simples de custo-benefício, mas do lado do custo estava quase sempre o meu amor próprio, já que dinheiro era o que havia disponível para esse dia e o desgaste físico aos 18 anos é residual, sentimo-lo como se fosse crónico e vivemos com ele, enquanto houver fígado. às expensas desse amor próprio voltei a ver a Mia e valeu a pena. na noção adolescente de 'valer a pena'. existe uma capacidade de encaixe completamente elástica num adolescente, que depende sobretudo da igual elasticidade de aceitação dos nossos pares, que por compaixão nos esquecem as fraquezas com facilidade. não acho que os adolescentes sejam assim tão cruéis. sobretudo tendo em conta a quantidade de situações humilhantes em que nos colocamos constantemente. sobretudo comparando com os trintões e a sua ilusão de que já são adultos respeitáveis e selectivos.