óbvio

ao fim de pelo menos duas horas a fazer conversa de sala com pessoas desinteressantes, cruzou o olhar com "a" miúda da sala. já a tinha visto como é óbvio, era visível, mas não estava à espera que ela fosse olhar para ele desta forma. com um eye contact de mais de 3 segundos, com um sorriso implícito, com demorada dessincronização entre o virar da cara e o virar dos olhos. foi tão óbvio que a sua alma se encheu de confiança.

tirou mais um croquete da mesa mais próxima e pensou se faria bem em aproximar-se da dela ao primeiro olhar, seria um bocado rebarba descontrolada, próprio de alguém que não está acostumado a que olhem para ele "olha-me esta! a olhar para mim, já foste's!". no fundo foi o que pensou, mas isso não podia mostrar. manter o nível. além disso o seu cepticismo não permitia que se agarrasse muito a esta tese. conhecia suficientemente o jeitinho inato para fazer merda mesmo numa situação aparentemente ganha.

mastigou o croquete bem mastigadinho e pensou, pensou, e mastigou o croquete. entretanto passaram uns canapés com uma uva em cima e bacon lá para o meio e tirou um, tinham bom aspecto. afinal estavam um bocado oleosos, mas comiam-se. que raio, tinham uma folha de qualquer coisa verde que não conseguiu identificar, até o palito ficou verde ali à volta. se o palito ficou assim, como é que estariam os seus dentes agora?! merda. tinha que ir à casa de banho verificar. engatar de dentes verdes só funciona com raparigas muito específicas. pousou o copo de moët&chandon e antes que se voltasse ouviu "os croquetes devem estar mesmo bons, ainda não saíste daqui do pé da mesa" era ela! merda, ela tomou a iniciativa, e ele não teve tempo para pensar em nada, ainda estava a mastigar o canapé com coisas verdes e tinha a cabeça completamente oca, sobretudo depois de uma pickup line daquelas. "por acaso estão, a minha tia faz uns parecidos" a minha tia! que estupidez de conversa, a tia dele fazia croquetes, ainda por cima cuspiu um bocado de casca de uva, será que ela viu? e agora? assumia que tinha cuspido e fazia uma piada acerca disso? que género de piada? ela continuou "ai faz? é cozinheira?" pronto, pior do que a conversa de merda era ela entrar na conversa, dar hipóteses àquela conversa, mais valia que tivesse gozado com ele, assim podia baixar logo a guarda e adoptar a postura nº3 'pois, eu sei que sou estúpido, gozo comigo próprio e é por isso que me achas piada' mas agora tinha que entrar na conversa.

bom, decidiu mudar a direcção "não, eu não tenho tios. estava só a querer parecer interessante" - "ahaha, fizeste um bom trabalho, fiquei mesmo interessada na tua tia" - "hhmm.. então também te deves estar a divertir tanto como eu aqui nesta festa" - "sim, não conheço quase ninguém, sou irmã da galerista" - "ah, boa, eu sou irmão da artista" - "ah, isso é interessante, podias ter começado assim a conversa. então explica-me lá, ela é mesmo bipolar?" - "não, é só parva" - "foi o que me pareceu ... aquela escultura que parece revestida a vomitado é um bocado fálica, quando a vi pensei que a tua irmã também tinha visto um vídeo que me mandaram por mail chamado 'extreme blowjobs'" - "ahahaha" - "que vergonha, ainda agora te conheci estou com estas conversas, eu não sou assim, ok? isto é do champanhe" - "não faz mal, eu vou só ali dizer à minha irmã para mudar de galerista" mas a gargalhada marcou o momento em que se deslumbrou com ela. a conversa estava um bocado exponencial, ele imaginou-a um pouco mais uptight, mas no mínimo tinha encontrado alguém com quem falar o resto da festa.

"olha, já agora, estava a evitar dizer-te mas tens uma coisa verde nos dentes" - "ah! obrigado, epá e desculpa lá também eu não te ter dito antes, estava com vergonha, mas tu estás com uma maminha de fora" - "ai meu deus! estava assim há muito tempo?!" - "desde que chegaste à festa. vou buscar mais champanhe, queres?"

v2.0

a última vez que consegui sentir-me, foi quando o puto começou a falar. tenho a certeza de que esse foi o último momento em que achei que a vida era uma coisa admirável. ele estava não só a falar, estava a dizer as palavras que eu lhe ensinava. ou as que me ouvia dizer, algumas delas pode dizer-se que em momentos menos felizes. durante as semanas seguintes eram palavras atrás de palavras, pai, gato, bola, foda-se, gaja, alguns encadeamentos de palavras, quero gato, foda-se bola.

um dia aprendeu a palavra miragem. não sei onde a foi buscar, não me lembro de a ter dito, pelo menos vezes suficientes para ele a registar, e apesar de nunca ter pensado nisso antes, sempre achei por intuição que aquela palavra dificilmente seria pronunciada por uma criança, até que ouvi o meu filho dizê-la. miragem? diz filho, miragem o quê? queres a bola? queres o gato? "miragem!" repetia ele. com o tempo esqueci-me deste pormenor da sua aprendizagem.

com o tempo esqueci-me que estava a educar um filho e tentei recomeçar a minha vida normal. a minha vida antes de ter um filho. isto é, lembrei-me durante a sua educação que me tinha esquecido da minha própria educação, que estava a viver a vida dele. normal. então recomecei a normalidade, reeduquei a minha vida, e esqueci-me da educação do meu filho. só desisti deste irritante exercício de estilo quando percebi que já não havia normalidade, que a minha vida era agora outra coisa, um regresso a fosse o que fosse já não fazia sentido, não havia nada onde regressar, isso seria desistir do meu filho. e foi então, por volta dos seus 8 anos que deixei de sentir fosse o que fosse. felicidade ou infelicidade, só havia o meu filho. e o meu gato.