do sol ao rato

abro os olhos, o mundo está de lado na minha sala, a minha mão desmaiada de palma para cima no fim do meu braço estendido no tapete foca a minha atenção e desfoca o resto do mundo como numa fotografia pretensiosa de profundidade de campo reduzida. pela janela entra a luz directa do sol, acentua os contrastes, reduz-me o tempo de exposição. não é o sol da manhã senão podia ser a hora da minha morte.

não me levanto, lembro-me de outras fotografias exactamente iguais, sem as localizar imediatamente no tempo. "já estive aqui" e o esforço de me lembrar leva-me a destruir a barreira da memória, e faz-me comichão no cérebro. numa vida passada, contigo, não estavas em casa, mas eu estava exactamente nesta posição sem esperar por ti, estava simplesmente deitado no tapete da nossa sala a sentir o sol na cara, sem pensar no que tinha para fazer, se é que tinha. lembro-me agora. estava a pensar que já tinha estado exactamente naquela posição anos antes, sozinho, em casa da minha mãe. ela não estava. isso pareceu-me há séculos. noutra vida.

acordei então de um sonho nostálgico e os diques de defesa do meu cérebro ainda não se tinham levantado, todas as memórias se misturavam nos minutos seguintes ao acordar. porque é que eu estava ali agora e não estava em casa da minha mãe? quando é que passei a chamar casa da minha mãe a essa toca onde passei toda a minha vida até aí e ninguém me punha em causa? o que é que eu estava a fazer ali tão longe de casa? desprotegido? porque é que arrisquei tanto? porque é que te disse que sim, vamos viver juntos? como é que acreditei que podias ser minha mãe e mãe dos meus filhos e minha amiga e minha foda? como é que acreditei que eu seria um bom companheiro de alguém?

acordo agora de outro sonho, no qual não tinha amigos e não importava. estava simplesmente no mundo como toda a gente. era um indivíduo anarca numa sociedade de desconhecidos, que até funcionava, e onde se passavam coisas e mais coisas, de sequência kafkiana sem que ninguém as estranhasse, mesmo estranhando-as. acordo e vejo esta fotografia tão familiar que me faz duvidar que a minha vida não seja cíclica e que portanto não vai a lado nenhum.

apaguei-te da memória, e aos nossos filhos, perdi-vos, não sei onde vos deixei. mas vejo nesta nova fotografia sinais de uma outra família, a bola do meu filho ali debaixo do sofá, o soutien da minha mulher caído no tapete, o osso de plástico do meu cão, mordido e cheio de pêlos com uma definição tão clara que parece mesmo que aquele cão tem uma presença incontornável na minha vida, que alguma vez brinquei com ele com vontade e que fomos felizes os dois. nestes instantes em que as represas da minha memória são repostas e vão impedindo inundações maiores começo a reentrar em todas estas novas realidades, tão presentes que não sei como há segundos as abominava, e vou abraçando-as lentamente. coisa que não consegui fazer quando vos deixei.

não sei quantos anos tenho. cada vez que entro completo numa memória descubro mais uma década da qual me esqueci. também não sei quantas mais vezes vou ver esta fotografia que me atravessa vidas inteiras e se cola inoportunamente aos momentos simples. o sol adivinho que terá sempre esta intensidade que a sobre-expõe.

5 comentários:

Margarida disse...

Lindo. Adorei!

Courage my love disse...

Mau para ti ou para o teu personagem, que nunca o tenham posto em causa na confortável toca da sua mamã. Todos os homens depressivos tem a cabeça na cona da mãe, enfim.

disse...

é a primeira vez que alguém tão aguerridamente inveja a minha mãe aqui no blog. parabéns por isso, acho eu.

Courage my love disse...

Desculpa lá, acho eu. Entusiasmei-me na perspectiva de ser a mãe do teu personagem e não a tua.

disse...

a minha personagem congratula-se pelo teu entusiasmo explícito.