este é o amanhecer de um homem a par com uma crise de semi-meia idade, um homem específico, chamemos-lhe joão a fim de preservar o seu anonimato, saído de uma paixão não consumada pouco importante, a primeira desde que vive sozinho e tem uma cama que não de solteiro como a do seu quarto de infância, de onde saiu tarde, como quase todos nós.
levantou-se com mais sono do que tinha quando adormeceu, ainda a presença de um sonho desconfortavelmente solitário, a cara inchada, um sabor a chão do elevador na boca, dificultam-lhe a chegada à casa de banho onde consegue a custo mijar acertando a espaços na sanita. entra para o duche, lava a cabeça com champô anti-caspa e usa o mesmo champô para lavar o resto do corpo começando pelos sovacos. repara que com a espuma da cabeça vêm alguns cabelos soltos, os mesmos que ontem. sai do duche, pesa-se e tem o mesmo peso que ontem, lava os dentes e pensa que ainda não marcou a tal consulta do dentista para arranjar o tal dente cariado que lhe dói sempre depois das refeições. olha-se ao espelho e repara mais nas rugas hoje e no mau aspecto com que fica quando não faz a barba. por vezes a sensação é exactamente a contrária, hoje curiosamente não. olha-se nos olhos e diz entredentes "és uma merda.. não vales nada.. és feliz? não. porque é que te levantas sequer da cama? ninguém sente a tua falta se não saíres de casa hoje". depois sorri para si próprio e diz "estava a brincar!" desfaz o sorriso num voltar costas ao espelho e veste-se.
no patamar encontra a vizinha "bom dia vizinho!" "bom dia georgete!" a alegria dela a esta hora dá-lhe náuseas mas é simpática, claramente também se diminui a si própria ao espelho pela manhã, ou talvez não. talvez pelo contrário, se motive ilusoriamente acerca desta sua beleza cubista. "estás gira georgete, cortaste o cabelo?" "cortei! que raro, um homem a notar uma coisa dessas, só podias ser tu, hihi". a georgete está sempre a insinuar-se ao joão, mas pensa ele que ela provavelmente se insinua a qualquer mamífero macho. pena que o joão ache que deus lhe reservou uma vénus de milo com braços, uma apresentadora portuguesa com cérebro, e não consiga ver para além da gabardine de banalidade de que a georgete reveste o seu quotidiano para esconder uma alma carente de amor e volúpia. descem juntos despedem-se à porta do prédio, ela dá-lhe a mão e um sorriso numa ternura inundante que vai deixar o joão a pensar nela o resto do dia, ou até ao metro.
de facto, que raio, nunca pensou assim na georgete, a miúda passa as noites e fins de semana sozinha em casa, como que para aproveitar a promoção telefónica da zon, ora aparecem umas amigas, ora aparece a georgete lá em casa dele a perguntar se lhe consegue abrir um ou outro frasco. aparentemente está sempre feliz e sorridente, será que tem um corpo bonito? sempre a pensar nas mulheres como objectos este joão. refreia esse pensamento, repreende-se pela quantidade de vezes que em certas situações se decidiu pela mais gira de entre duas amigas e levou uma tampa. foram todas. nunca deu valor às pessoas banais. "gosto de ti como amigo" ouviu tantas vezes que passou a aplicá-lo acefalamente a quem se aproximava. a georgete, a georgete foi crescendo na sua cabeça de tal forma que à porta do metro já só pensava em estratégias para ir lá bater à porta quando chegasse às 19 a casa. a georgete chega a casa às 18 e agora de inverno veste logo o pijama dos ursinhos com que vai lá tocar à porta quando precisa de abrir a compota. de repente a textura leve do pijama dos ursinhos estava capaz de lhe dar uma erecção. perigoso, quando se entra no metro em hora de ponta.
mas merda! mais uma vez, o cartaz da intimissimi do outro lado da linha do metro deixava-o deprimido com a possibilidade de vir a ter uma namorada que não modelo de lingerie e ter que apanhar com ela o metro em frente a este mesmo cartaz, que se multiplica pela cidade. esta deusa! estes olhos! q'olhões! ter que a enfrentar todos os dias com uma namorada menos que perfeita era admitir-lhe uma derrota humilhante, uma vida falhada, depois de tantos anos a flirtar com modelos de cartazes, de múpis, de La Redoutes. não podia ser. este pensamento quero eu dizer. repreendeu-se mais uma vez pela superficialidade que parecia estar a minar a sua decisão há momentos inabalável. as formas de apreensão desta realidade mudavam ao ritmo das janelas do metro que chegava, como se tivesse que decidir-se antes de se afastar do cartaz, porque naturalmente não podia tomar uma decisão que não ponderasse estas situações e a melhor forma era tomá-la em conjunto com elas, em confronto directo. sozinho é fácil.
que merda mais superficial. tenho que fazer uma correcção.
devia começar por dizer que o joão tem mais problemas que a banal luta da solidão de quem acha que ninguém é suficientemente bom para ele. o joão tem um trabalho que se banalizou. pouco gratificante, nada evoluiu nos últimos 10 anos. fá-lo sem pensar, obediente e puta. mas o trabalho enfadonho de quem não tem vida nas veias para o abandonar também não é motivo de depressão, ou, a ser, é pouco digno da atenção dos outros. o problema do joão vem detrás e acompanha-o. vem de dentro. do facilitismo com que entrou no mundo real, do desprezo das oportunidades que lhe apresentaram em prol do conforto físico, a forma como perdeu os amigos desinteressados desta decadência de interesses. o joão tem um olho na merda, o outro no infinito, interessam-no banalidades externas que não controla, foge ao âmago da questão, da sua questão. o confronto com a sua própria identidade. "não serei eu um gajo suportável para mim próprio? se me conhecesse na rua, seria meu próprio amigo? ou seria daqueles gajos que odeio de morte?" (convém lembrar que o joão odeia todos os gajos de morte). o problema do joão é não saber o que ser, do que gostar, para onde ir, o que fazer, o problema é tudo isto e nada disto, porque nada disto lhe parece a causa de tudo, e tudo junto parece mais um sintoma. a causa é profunda e só se resolve com outra vida. o analgésico pode passar pela georgete. pode? pode. pena o nome horroroso.
entra no metro. embarca. tomou a decisão de não pensar. agir. agir sem pensar só pode resultar mal para terceiros. esses têm os seus próprios problemas.
de resto, numa outra vida poderá começar o dia da seguinte forma. levanta-se ensonado, ficar a dormir mais um bocado seria bom. sente a cara inchada como um saco de batatas, lembra-se do ridículo das caras inchadas do metro em hora de ponta. hálito a água de lavar tremoços. entra no duche lava o cabelo com champô anti-caspa, lava também o resto do corpo e repara que não está a ficar mais novo. sai do duche, pesa-se e não engordou. lava os dentes e lembra-se que tem que marcar a consulta com o dentista. sorri ao espelho à georgete, atrás de si, que acaba de entrar na casa de banho, de cara inchada, e a sorrir.
11 comentários:
Muito parecido com uma pessoa que conheço. Deve ser porque o zé deste blogue é honesto, e provavelmente em todos os textos caracterizam os comportamentos, os sentimentos e o que os homens pensam. Não deixa de ser triste, mas é honesto.
agradeço, chorando baba e ranho.
quer um lencinho? Os homens "do antigamente" usavam lenços, agora assoam-se nas mangas...
mangas não tenho, em casa ando sempre todo nu. logo, ranhoso.
eventualmente uso meias.
ó JC também a mãezinha te bordava as iniciais nos lençóis?
podias publicar estes textos ou então fazer um filme...
não nos lençóis, mas na roupa interior para não a perder.
já te disse o que penso, se o que eu escrevo fosse música seria qualquer coisa entre João Pedro Pais e o Iran Costa. acho que está a vários anos luz de merecer sequer atenção da secretária de um editor. é aqui que isto pertence.
E isso dá o quê um João Costa? Ou coisa semelhante...O Iran costa vendeu muito com o "bicho" dele e o outro também, com a carinha de homem mal amado. São opções!
Muito bem.
A felizarda da Georgete. Aqui no meu prédio só há Georgestes, não há Joões. Tenho que abrir tudo sózinha.
estou para descobrir o que "semi-meia idade" quer dizer... metade de 50 são 25, é possível...
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