um fim infinito

a Rute. amiga dos tempos das bebedeiras com verde tinto, é uma excelente pessoa, gostei imenso dos primeiros tempos em que a conheci, saíamos muito, combinávamos coisas durante o dia, coisa rara nessa época. não me lembro de ter tido uma única discussão com ela nesses tempos, embora achasse que até que isso acontecesse não podíamos propriamente considerar amizade aquilo que tínhamos. até posso dizer que havia um flirt constante, pelo menos da minha parte, e que se não o pensasse correspondido não teria prosseguido com essa relação de forma tão constante. é essa a base das minhas relações humanas, é fácil admiti-lo, embora triste.

tenho uma imagem clara desses tempos, de uma felicidade só atingível pelo distanciamento temporal dos acontecimentos.

hoje em dia liga-me diariamente. sim, somos amigos, já discutimos várias vezes. fica a falar até ter que ir buscar um copo de água para humedecer a garganta, eu fico a ouvir ou a pensar na fome em África, até ela me fazer uma pergunta qualquer e tenho invariavelmente que pedir-lhe para repetir. a conversa gira quase sempre à volta da minha vida, o que é estranho, tendo em conta que eu praticamente só oiço. acaba sempre, sempre, com ela a perguntar-me se ando bem, que nunca digo nada, se preciso de falar, se precisares diz. ok, digo eu, eu digo.

"então e aquela Rita? sempre foste sair com ela na 4a feira?" fui. "ah e então? correu bem?" sim, acho que sim. "então?!" então o quê? "conta, nunca contas nada, quero saber." o que é que queres saber? sim, houve sexo, contentinha? "aaaahh, eu sabia! e foi bom?" foi normal, foi sexo, não nos conhecemos bem, contou mais o calor que o savoir faire. "ah, claro, agora com o tempo isso melhora sempre! vais ver." não, acho que não vai haver outras vezes. "então??" foi bom, mas não temos grande conversa, ela é dentista. "pois, estou a ver, mas não te preocupes, parte para outra, o que não te falta são interessadas" não estou preocupado. "e andas bem? às vezes tenho medo que te sintas sozinho" ando bem, acho que já tinhas perguntado. "ok, já sabes, se precisares de falar..." ok Rute.

e tu Rute? andas bem? lembro-me que não ficaste muito bem depois da última discussão que tivemos, lembro-me de partires um prato contra um espelho e este estilhaçar e um pedaço raspar-te a cara o suficiente para deixar um risco vermelho para sempre, lembro-me do teu choro convulso e do meu desespero para te acalmar sem poder simplesmente abandonar essa casa com medo de que fizesses uma estupidez maior. andas bem agora? ao fim de duas semanas do espaço infinito que te pedi voltaste a ligar-me como se tivéssemos acabado de nos conhecer ou pelo contrário, como se fôssemos amigos desde sempre, mas aquilo que eu consigo fingir à tua frente não consigo fingir na minha cabeça, e por isso todas as conversas contigo me lembram o alzeimer da minha avó. já estive louco por ti, se já não estou é porque houve um luto. morreu essa pessoa, tu és outra, que eu conheço mal e que me esforço por lembrar que conheço bem. não sei porque insistimos nisto, mas só tenho a agradecer-te que o façamos pelo telefone, porque quando te vejo ao vivo, essa cicatriz na cara transporta-me para o climax desse fim abominável e sinto arrepios de nojo a chicotear-me a consciência, apetece-me apagar com um gesto brusco essa memória gravada na tua cara, na verdade apetece-me apagar a tua cara inteira.

e tu Rute? conta lá. "está tudo bem, vou agora fazer um curso de fotografia" boa, lembro-me que tu tinhas muito jeito para tirar fotografias aos pés. "pois era, foi aquele Renato que te falei que me convidou, ele anda lá" ah sim, o Renato "ele dá um bocado em cima de mim, está sempre a ligar, mas acho que também não temos muito a ver. como tu e a dentista" pois, mas não te fazia mal estares com outras pessoas "sim, mas não ando à procura, estou bem comigo mesma. a conhecer-me a mim própria, estava mesmo a precisar de estar sozinha" ok "com tempo para estar com os meus amigos, tu incluído" ok.