revolver

a capacidade de uma só pessoa despoletar uma revolução, se não foi já exaustivamente esmiuçada e publicada, foi pelo menos amplamente tentada, de forma patética ou de forma doutoral, com ou sem sucesso, desejada, individualmente ou colectivamente, em privado ou em público, metodicamente ou ansiosamente discutida, em tempos de apática paz ou em períodos de crise extrema ou de sufoco ditatorial.

porquê a revolução? a revolução é mais do que um grito de desespero, é um atropelamento mortal em raiva, sem fuga, capaz de trazer a justiça social pela força bruta. o que é esta justiça, das suas perspectivas e contornos, a quem toca na prática e em detrimento de quem, se de uma minoria ou de uma maioria, é mais do que aquilo a que me consigo propor divagar em cima neste parapeito vertigo sobre a avenida da Liberdade, sem sapatos. na teoria, a revolução representa a força do desespero de uma maioria desfavorecida e no seu limite da consciência. na prática, representa a capacidade de condução de uma elite esclarecida sobre uma massa acéfala desesperada, que apesar da condição de acéfala, sabe bem o que não quer, mas não para onde a conduzem.

porque não uma manifestação? uma manifestação é a forma mais rastejante de um ser humano se manifestar. sob uma baliza policial, é o rinoceronte de D Manuel, é uma gay parade sem pride, é marcada segundo a conveniência das partes envolvidas, dos manifestantes, das forças da ordem, do município, do trânsito, dos pacificadores, dos ambientalistas, das necessidades, dos alvos da manifestação, dos pombos, da puta da mãe deles. é a antítese do propósito da manifestação porque não causa qualquer incómodo, porque se torna invisível. para passar uma mensagem, é preferível pôr um anúncio num jornal. isto não é uma hipérbole, é mesmo preferível, porque notícias de manifestações na TV, ninguém V. a mente diverge do ecrã para o cheiro a bife que vem da cozinha. publicidade no jornal todos papam, é uma questão de marketing. o sentido jurídico da palavra manifestação não é o mesmo que o sentido linguístico, a verdadeira manifestação deve ser feita de forma espontânea, convocada informalmente, só porque é proibido.

a revolução pode assim ser uma simples manifestação espontânea, pacífica, um ajuntamento de centenas, de milhares de pessoas, que, desde que haja fé e persistência suficientes, mais tarde ou mais cedo resultará em confrontos físicos. ela é ilegal, não foi convocada, a autoridade vê-se no direito de usar o cacete. assim o manifestante vê-se no direito de se defender. e se as pessoas não voltarem para casa ao fim do dia? e se a manifestação for contínua? e se o povo sabendo que tem razão tiver tomatinhos para não arredar pé? e se não desistir, se estiver disposto a ir até às últimas consequências? a morte? e se eu não sair daqui de cima até que voltes a esta varanda e fales comigo decentemente e me digas que afinal estavas errada e eu estava certo? e se não houver limite na cabeça das pessoas que estabeleça o bom senso e a guerra civil rebentar por causa de merdinhas destas? por coisas evitáveis logo no início das conversas?

revolução de um só homem. podem ser cem, mas basta um que incendeie outros noventa e nove, um rastilho, e que depois movam uma multidão unida por um sufoco. o sufoco de não querer viver sob as duras regras, de estratégia dúbia, de uma elite que sucessivamente arrasta a maioria para um abismo que estica à medida que nele se cai, e que sugere numa base diária novas regras para cingir a voz dessa maioria. quando o poder da mole humana que constitui uma comunidade, uma nação, um continente, um planeta, se resume ao voto em entidades genéricas com bandeiras abstractas e discursos tão abrangentes e pouco objectivos que tendem para zero, que não representam nada de prático, nada daquilo que na verdade podem ou querem fazer, quando a população entende que aqueles que elege não têm poderes, nem em teoria nem de facto, para os governar, nem sequer vontade, para além daquilo que lhes garanta nova posição, quando se atinge o limite da compreensão para a obscenidade que nos toca cada vez mais dentro da própria roupa, basta um fósforo (amorfo?) que inflame um rastilho assaz consistente, que rapidamente se dará a explosão branqueadora. o rastilho é o que importa tocar, barris de pólvora há-os por todo o lado, sempre, à espera da menor atenção.

*um dado curioso relativo ao controlo de um barril de pólvora: quando todos os preços aumentam, o dos canais de informação cai a pique. não que com isso a informação seja mais democrática, pelo contrário, mas poderia sem perigo algum sê-lo, que perdeu-se já a capacidade de a filtrar ou pior, de a sentir.

enfim, não precisas de voltar, entendo agora que a minha ansiedade não se deve ao facto de me teres deixado aqui com esta chuva, com os faróis dos carros a encadear-me quando descem a avenida. deve-se antes à consciência que aflora nesta cacofonia de ideias de merda, de que sempre fui governado, por ti, por eles, por outros antes de ti, sempre me deixei governar ao bel-prazer de terceiros indiferentes, com umas quantas manifestações, organizadas, dentro dos limites da legalidade, algumas queixas azedas do estado das coisas, sem efeito. até que te fartaste e eles fartaram e fartarão dessas queixas e seguiste e seguiram e seguirão com a sua vida e eu continuo a necessitar de ser governado, com a agravante dos estragos que me deixaste na alma, cada vez com menor capacidade de aprender a governar-me sozinho, e o chão a aproximar-se.