a última vez que consegui sentir-me, foi quando o puto começou a falar. tenho a certeza de que esse foi o último momento em que achei que a vida era uma coisa admirável. ele estava não só a falar, estava a dizer as palavras que eu lhe ensinava. ou as que me ouvia dizer, algumas delas pode dizer-se que em momentos menos felizes. durante as semanas seguintes eram palavras atrás de palavras, pai, gato, bola, foda-se, gaja, alguns encadeamentos de palavras, quero gato, foda-se bola.
um dia aprendeu a palavra miragem. não sei onde a foi buscar, não me lembro de a ter dito, pelo menos vezes suficientes para ele a registar, e apesar de nunca ter pensado nisso antes, sempre achei por intuição que aquela palavra dificilmente seria pronunciada por uma criança, até que ouvi o meu filho dizê-la. miragem? diz filho, miragem o quê? queres a bola? queres o gato? "miragem!" repetia ele. com o tempo esqueci-me deste pormenor da sua aprendizagem.
com o tempo esqueci-me que estava a educar um filho e tentei recomeçar a minha vida normal. a minha vida antes de ter um filho. isto é, lembrei-me durante a sua educação que me tinha esquecido da minha própria educação, que estava a viver a vida dele. normal. então recomecei a normalidade, reeduquei a minha vida, e esqueci-me da educação do meu filho. só desisti deste irritante exercício de estilo quando percebi que já não havia normalidade, que a minha vida era agora outra coisa, um regresso a fosse o que fosse já não fazia sentido, não havia nada onde regressar, isso seria desistir do meu filho. e foi então, por volta dos seus 8 anos que deixei de sentir fosse o que fosse. felicidade ou infelicidade, só havia o meu filho. e o meu gato.
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